É muito bonito que o chamado de “vamos às ruas” tenha sido feito por um cidadão de 83 anos que já contribuiu tanto para o Brasil que poderia estar “em casa, guardado por Deus, contando vil metal”.”É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte!” Com os braços levantados, fazendo gestos revolucionários e cheios de energia, os cantores gritavam esses versos para uma multidão que cantava junto. A cena seria bonita de qualquer jeito. Mas, nesse caso, podemos usar o adjetivo “histórico”. Isso porque os moços no palco eram os autores da canção Divino, Maravilhoso: Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos com 83 anos. Atrás deles, sentados no palco, estavam Chico Buarque, 81, e Djavan, 76.

A cena aconteceu em Copacabana, Rio de Janeiro, no último domingo, quando os agora octogenários ícones da música brasileira subiram de novo juntos em um palco de um protesto e cantaram hinos de resistência à ditadura e que fazem parte da história do Brasil, como Cálice, Vai passar e Aquele Abraço. O show fez parte de uma manifestação contra a “PEC da Blindagem” e a proposta de anistia aos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

O chamado tinha sido feito três dias antes por Caetano Veloso em um desabafo revoltado publicado nas redes sociais. “A gente tem que ir para a rua! Para frente do Congresso, como já fizemos outras vezes!”, desabafou, visivelmente indignado: “não admitimos isso como nação, como povo, não admitimos!”.

Além de Gil, Chico e Djavan, Paulinho da Viola, 82 anos, também participou do protesto ao lado dos “colegas”. É muito bonito que o chamado de “vamos às ruas”, em um momento tão importante da história brasileira (temos a chance de punir golpistas pela primeira vez), tenha sido feito por Caetano, um cidadão de 83 anos que já contribuiu tanto para a música brasileira e que poderia estar “em casa, guardado por Deus, contando vil metal”, como diz a música Como os nossos pais, cantada no evento por Maria Gadú.

Nunca é tarde para ir às ruas

Mas também não chega a ser surpreendente. Chico, Caetano e Gil nunca se furtaram de participar da vida pública do país e de lutar pela democracia. Eles sempre estiveram lá. E o comprometimento em ser um cidadão atuante no mundo não é algo que “passe com o tempo”.

Nas redes sociais, muitos recuperaram uma foto histórica, onde Caetano, Chico e Gil marcham juntos na “Passeata dos 100 mil”, de braços dados, contra a ditadura militar, em 1968, há 57 anos. A foto faz parte dos livros de história. Em 1984, eu era criança, mas mesmo assim meus pais me levaram no Comício das Diretas, no Rio de Janeiro. Chico e Caetano, obviamente, estavam lá.

Não seria diferente agora que envelheceram. Inclusive, essa parece ser mais uma das lições dadas por vários representantes dessa geração: nunca é tarde para estar nas ruas e para tentar mudar as coisas. No Brasil, temos Chico, Gil, Caetano, Djavan e Paulinho da Viola. No exterior, temos Jane Fonda, por exemplo, a atriz e ativista do meio ambiente de 87 anos que vive sendo detida em protestos.

Ver esses gênios octogenários indo “para as ruas” de novo é emocionante. Em uma imagem que circula nas redes sociais, uma jovem chora copiosamente enquanto canta Cálice na frente do palco. É de chorar mesmo. Mas é também uma inspiração.

Tomara que a gente consiga fazer como eles e “levantar a bunda do sofá” cada vez que tem preguiça de lutar contra coisas revoltantes ou que repetimos o coro dos acomodados: “ah, mas isso não vai dar em nada”. Se Gil, Chico e Caetano pensassem assim, estariam em casa quietos há tempos, não?

“Mamadores da Lei Rouanet”

Os últimos anos não foram fáceis para a cultura brasileira. E nem para Chico, Gil e Caetano. Os três, assim como muitos artistas brasileiros, foram apelidados de “mamadores da Lei Rouanet”, chamados de corruptos, desrespeitados e xingados nas ruas e nas redes sociais. Eles poderiam simplesmente ter se cansado de dar a cara a tapa e de se envolver com a vida pública do país, mas algo me diz que eles jamais conseguiriam fazer isso, para nossa sorte.

“Nós não poderíamos deixar de responder aos horrores que vêm se insinuando à nossa volta”, disse Caetano na manifestação, ao convidar os “colegas”. “Vários de nós aqui já passamos juntos por momentos no Brasil parecidos com esse, e estamos sempre em busca da autonomia cada vez maior do nosso povo. Esse é um momento em que estamos fazendo de novo essa exigência”, disse Gil. Ele se referia a um momento em que a extrema direita avança no mundo todo e em que o presidente dos EUA, Donald Trump, faz um dos maiores ataques contra a soberania do Brasil da história. Caetano e Gil têm razão: “é preciso estar atento e forte. Atenção!”

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.