28/10/2025 - 7:00
Punir misóginos não é sobre proibir piadas. É sobre violência física e psicológica. O ódio a mulheres não é brincadeira; ele mata.Há cerca de dez anos, quando Dilma Rousseff era presidente e uma campanha barulhenta contra ela mobilizou parte do país, um adesivo nojento passou a ser visto em carros Brasil afora. Eles mostravam a imagem de Dilma de pernas abertas. Essa cena ultrajante era colada na entrada dos tanques de carros para que, quando o carro fosse abastecido, uma imagem sexual fosse formada, simulando um estupro.
Essa é uma das imagens mais ostensivamente misóginas que já vi na vida. E até hoje me assombro ao lembrar o que aconteceu com a primeira mulher eleita presidente no Brasil.
Sempre que penso em misoginia lembro de Dilma, que foi chamada de louca e descontrolada em capa de revista de grande circulação, xingada por um Maracanã lotado na abertura da Copa de 2014 e considerada por muitos incapaz pelo fato de ser mulher.
O que ela sofreu foi misoginia, um tipo de ódio sistêmico às mulheres que se manifesta em ofensas, exclusão, discriminação e violência psicológica e física. O comportamento afeta pessoas do gênero feminino de todas as idades, que são tratadas como objetos, ofendidas, agredidas por parceiros e até mortas.
Se você é mulher, provavelmente já foi vítima desse mal. É possível que você já tenha perdido um emprego para um homem porque ele “ao contrário de você, não corria o risco de engravidar”, tenha sido xingada no trânsito por um homem que acredita que mulher não sabe dirigir e recebido ofensa nas redes sociais, esses espaços que viraram um ambiente perfeito para misóginos covardes atuarem. Não podemos esquecer, claro, da pior face desse ódio: o feminicídio, um crime epidêmico no Brasil.
Erradicar a misoginia parece uma tarefa impossível. Mas podemos tentar coibi-la com educação e também com punição.
Nesse sentido, temos, agora, uma pequena luz no fim do túnel. A CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado Federal aprovou na semana passada um projeto de lei que inclui a misoginia na Lei do Racismo. O projeto de lei, de autoria da senadora Ana Paula Lobato (PSB-MA), define a misoginia como “a conduta que manifeste ódio ou aversão às mulheres”, baseada na crença da supremacia do gênero masculino. E altera o primeiro artigo da Lei 7.716, de 1989, que passaria a vigorar como: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional ou praticados em razão de misoginia”. Com isso, também a misoginia seria punível com reclusão de um a cinco anos e multa.
Para ser aprovado, o PL ainda precisa passar pela Câmara dos Deputados, mas acredito que a gente possa ter um pouco de esperança. Só o fato desse assunto estar sendo tratado com seriedade já é um ótimo sinal. Isso era algo impensável dez anos atrás, quando a presidente do Brasil foi vítima da tal campanha vexatória dos adesivos com a perna aberta.
Feminista antiga que sou, lembro de ouvir, em tom de deboche, que eu “usava palavras difíceis” em algumas vezes em que falei sobre misoginia em circulos de pessoas “modernas” e “informadas” de São Paulo. Sim, no início do milênio, muitas pessoas nem sabiam o que essa palavra significava, o que (graças às deusas e muito trabalho) percebo que é bem diferente quando converso com jovens da geração Z.
Críticas
A lei é criticada por alguns, que dizem que ela é muito genérica e precisa ser mais específica e clara. Pode ser. Se a lei precisa ser aprimorada, que seja. Essa é uma discussão importantíssima. Mas é inegável que a misoginia precisa ser tratada formalmente como crime, porque é isso que é. E afirmo isso nao só como jornalista e feminista, mas como vítima de ataques misóginos em massa, que me causaram Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Sim, misoginia adoece.
Assim que o Senado aprovou o projeto, os defensores de piadas que são ofensas já começaram a se manifestar, obviamente, com grande preocupação com o futuro da liberdade de expressão (esse termo que é distorcido a cada segundo). Fiquem calmos, queridos, parem de “mimimi” (usando uma expressão que vocês amam). Punir misóginos não é sobre proibir piadas. É sobre violência física e psicológica. O ódio a mulheres não é brincadeira. Ódio a mulheres mata.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
