Seja num remake de uma novela, nas universidades ou na Justiça, mulheres negras que lideram continuam sendo vistas como intrusas. Ser forte é permitido. Ter poder, não.Em um dos momentos reveladores – e perversos – de Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre evoca, com aparente candura etnográfica, um dito popular que resumia a lógica sexual do Brasil Colônia: “[mulher] branca para casar, mulata para fornicar e negra para trabalhar”. A frase, crua e brutal, foi reproduzida por Freyre sem filtros, e envolta pelo racismo “adocicado” que marca a sua obra. Publicado em 1933, Casa-Grande & Senzala tornou-se rapidamente um clássico da sociologia brasileira, sendo uma espécie de pedra filosofal do mito da democracia racial no país.

Ainda que eu pudesse escrever páginas e mais páginas sobre como Gilberto Freyre ajudou a inventar a fantasia cordial que romantizou o estupro como convivência racial e o racismo como afeto – moldando por décadas a narrativa oficial sobre raça, sexo e miscigenação no Brasil –, escolho, aqui, me deter em um ponto específico.

Quero me concentrar na forma como Casa-Grande & Senzala dá voz, sem qualquer desconforto, a um dito popular colonial que escancara a lógica perversa que rege os corpos femininos negros no Brasil: uma lógica na qual as mulheres negras sempre tiveram funções predefinidas, e quase nunca escolhidas por elas.

Na ficção e na vida real

Essa forma de exclusão, disfarçada de algo natural, nasceu durante a colonização, passou pelo século 19, resistiu ao fim da escravidão e ganhou novas roupagens na República. Ao longo do tempo, foi repetida como um tipo de mantra: as mulheres negras podem ser fortes, mas não devem ocupar o poder. Uma máxima que ficou especialmente latente nas últimas semanas, quer na ficção, como na vida real e nas possibilidades de futuro do país.

Em meio ao sucesso do remake de Vale Tudo e ao retorno da clássica pergunta “quem matou Odete Roitman?”, o público brasileiro testemunhou – talvez sem perceber – a reafirmação de uma velha máxima: até mesmo na ficção, as mulheres negras precisam ser fortes. Sempre.

A protagonista Raquel Accioli, agora interpretada por uma mulher negra, passa por uma reviravolta que interrompe sua trajetória de ascensão social e a devolve à praia, vendendo sanduíches com um sorriso no rosto. A narrativa, no entanto, opta por não explorar o impacto simbólico dessa queda forçada. Não há conflito interno, a indignação é pouca, não há nem mesmo uma pausa dramática. Vemos apenas a manutenção de um papel conhecido: o da mulher negra que suporta tudo, sem jamais quebrar.

Mais adiante, quando Raquel retoma seu caminho rumo ao sucesso, o roteiro novamente silencia. A personagem esfria. Pouco espaço é dado para que Taís Araújo, uma das maiores atrizes que temos, explorasse as complexidades de ser uma mulher negra e empresária de sucesso – um feito ainda raro na vida real e, ao que parece, incômodo também na ficção.

Em vez de abrir espaço para a construção de uma mulher negra múltipla, contraditória e ambiciosa, o texto optou por uma neutralização pausterizada. Como se a ascensão só fosse tolerável se silenciosa. Como se o sucesso, para uma mulher negra em pleno Brasil de 2025, devesse vir sem barulho.

Meio acadêmico

Era também um retumbante silêncio que se esperava sobre a anulação do concurso público para a vaga de Professor de Literaturas Africanas e da Diáspora da Universidade de São Paulo (USP) nesse mesmo ano de 2025. E adivinhem quem foi aprovada em primeiro lugar nesse concurso?

Isso mesmo, uma mulher negra: a doutora Érica Bispo. Parte dos candidatos do concurso que aprovou a doutora Érica Bispo em primeiro lugar não aceitou o resultado decidido por uma banca formada por cinco professores e recorreu à instância superior da universidade.

Além de questionamentos sobre a qualificação da candidata (uma doutora), o grupo apresentou acusações de suposta proximidade da candidata com membros da banca, argumentos considerados frágeis e infundados pela própria Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), responsável pelo certame.

Ainda assim, o Conselho Universitário da USP – instância máxima de deliberação da instituição – optou por acatar os questionamentos, aparentemente desconsiderando as defesas jurídicas apresentadas pela candidata, e anular o concurso, em uma decisão que gerou indignação dentro e fora da universidade. Doutora sim, mas professora de uma das mais renomadas universidades do país parece ser ousadia demais para uma mulher negra.

No STF

Uma ousadia que, passados 134 anos da instalação do Supremo Tribunal Federal (STF), segue sendo tratada como impensável. Desde sua criação, em fevereiro de 1891, poucos meses após a proclamação da República, 172 ministros já ocuparam cadeiras na mais alta corte do país. Foram 166 homens brancos, três mulheres e apenas três homens negros. Até hoje, nenhuma mulher negra foi indicada.

Embora a organização política, econômica e social do Brasil tenha empurrado historicamente a imensa maioria das mulheres negras para profissões mal remuneradas, precárias ou alheias ao seu desejo, isso não significa ausência de capacidade ou talento. Um número ainda pequeno, mas cada vez mais expressivo, de mulheres negras rompeu o cerco do racismo e construiu trajetórias altamente qualificadas para ocupar qualquer espaço de poder – inclusive o STF.

Diferente dos primeiros anos da República, o Brasil de 2025 conta com juristas, professoras, defensoras públicas, promotoras e intelectuais negras com ampla experiência, legitimidade social e formação técnica para assumir uma cadeira na Suprema Corte. Frente à aposentadoria do ministro Luís Roberto Barroso, a escolha de uma mulher negra para o STF seria, portanto, não apenas uma medida urgente de reparação e justiça histórica, mas também um aceno concreto – ainda que distante do ideal – de reconhecimento e diálogo com o maior contingente populacional do país: as mulheres negras. Ignorar essa possibilidade em mais uma nomeação seria insistir em uma lógica de exclusão.

Não basta que nós, mulheres negras, sejamos admiradas quando cuidamos dos outros, quando resistimos, ou quando fazemos muito com pouco que nos é dado. Mas quando tentamos liderar, tomar decisões ou ocupar cargos importantes, somos vistas como intrusas, como fora do lugar. A mesma sociedade que elogia a nossa força, nega o nosso direito de mandar. Para nós mulheres negras do Brasil de ontem e de hoje, ser forte é permitido (e até exigido). Ter poder, não.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.