27/11/2025 - 12:29
É preciso construir mundos nos quais sejamos não só bem-vindas, mas também entendidas e respeitadas como sujeitas e artífices do nosso tempo.Trezentos mil. Este é o número aproximado de mulheres negras que se reuniram em Brasília no último dia 25 de novembro para marchar por reparação e bem viver . Trezentas mil trabalhadoras negras – alguns chegam a dizer que foram 500 mil – que se organizaram das mais diversas formas para estarem juntas em luta, mas também celebrando. Trezentas mil mulheres negras que vieram das mais variadas regiões do Brasil, além de países latino-americanos e africanos, para reafirmar a centralidade que nós, mulheres negras, temos na luta por um país mais justo e democrático.
E não faltam motivos para marchar até a Praça dos Três Poderes.
Um dos motivos era a celebração dos dez anos da Marcha da Mulheres Negras em Brasília. Em 18 de novembro de 2025, cerca de 50 mil mulheres negras de todo o país se uniram em um movimento político autônomo e inédito e marcharam na capital do país. A marcha buscava combater a invisibilidade das mulheres negras na sociedade brasileira, contestando estereótipos e expondo desigualdades históricas, como a maior taxa de feminicídios e de mortalidade materna entre mulheres negras , além da desigual remuneração no mercado de trabalho. Ali também se organizavam movimentos contrários aos acordos políticos que levaram à abertura do impeachment da presidenta Dilma Rousseff – cujo processo foi aberto em dezembro de 2015.
Dez anos depois, a memória coletiva foi não apenas relembrada, mas ampliada – atualizando as lutas diante de novos desafios nacionais e globais, num mundo que viveu uma pandemia que, no Brasil, teve as mulheres negras como suas principais vítimas.
Desigualdade estrutural
As condições das mulheres negras no Brasil seguem refletindo a interseção entre racismo estrutural, desigualdade de gênero e exclusão social. Mulheres negras representam 28% da população brasileira, segundo o IBGE, mas ainda estão longe de serem proporcionalmente representadas em cargos de liderança no setor público e privado. Dados de 2024 do Ministério do Trabalho e Emprego apontam que nós recebemos, em média, 53% menos que homens brancos, e cerca de 39% menos que mulheres brancas, evidenciando um duplo apagamento: por raça e por gênero. A área da saúde apresenta os maiores índices de mortalidade materna e menor acesso a serviços de qualidade, sobretudo em regiões periféricas. Esses dados reforçam a urgência de políticas públicas específicas que considerem as desigualdades raciais e de gênero de forma articulada, como historicamente reivindicado pelos movimentos de mulheres negras no Brasil.
No campo da violência, as mulheres negras são as mais expostas à violência doméstica, obstétrica e institucional. E se isso não fosse o suficiente, o Atlas da Violência mostra que, em 2023, mulheres negras foram 68,2% das vítimas de feminicídio no país. Logo se vê que a escolha da marcha para o dia 25 de novembro não foi aleatória. Isso porque essa é a data definida pela ONU para marcar o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher.
E não basta saber e tabular esses dados: é fundamental que essa situação de desigualdade seja reparada. E para que a reparação seja efetiva, as mulheres negras não têm que ser apenas objetos de políticas públicas, mas também suas autoras.
E foi isso que eu vi no meio de outras 300 mil mulheres negras: não só uma capacidade impressionante de re-existência, mas também uma variada gama de possibilidades de pensar o inimaginável, de construir mundos nos quais sejamos não só bem-vindas, mas também entendidas e respeitadas como sujeitas e construtoras do nosso tempo. Vivemos numa sociedade que é construída pela e para a exclusão (racial, de classe, de gênero e sexual); uma sociedade que insiste em colocar as mulheres negras – a base sobre a qual pende esse castelo de desigualdades – no lugar de vítimas, única e exclusivamente.
Ao marchar, nós mulheres negras, denunciamos as situações e estruturas das quais somos vítimas, mas vamos além. Exigimos que essa estrutura seja reparada, mas não com um emendo qualquer. O que nós desejamos é uma reparação que passe pelo bem viver, pela reafirmação de direitos básicos – como educação, saúde, acesso digno ao mercado de trabalho, etc. –, mas também a direitos que vêm sendo corroídos por esse modelo de mundo em que vivemos. Marchamos para exigir que tenhamos direito ao descanso (e ao fim da escala 6X1 ); o direito à diferença sem que isso seja tomado como desigualdade; o direito às festas e a todo tipo de lazer; e, sobretudo, marchamos para que nenhuma de nós não precise viver com medo.
E como nada acontece por acaso, nossa marcha coincidiu com um dos momentos mais simbólicos para o fortalecimento da democracia no Brasil – ocasião em que as instituições demonstraram sua capacidade de agir com firmeza e responsabilidade diante de ameaças ao Estado Democrático de Direito.
Pois é, se quando uma mulher negra se move, toda a estrutura se move junto com ela, imagina quando são 300 mil?
__________________________________
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
