30/12/2025 - 10:15
Tainara morreu após ser arrastada pela Marginal Tietê, uma entre as mais de mil vítimas de feminicídio no Brasil este ano. Homens não podem simplesmente matar mulheres quando “contrariados”. Chega.Se você é uma mulher brasileira, acredito que, como eu, termina o ano de 2025 com um gosto amargo na boca. “Eu não tenho nada para comemorar”, cantava Cazuza, e essa frase veio na minha cabeça na véspera de Natal, quando li que Tainara Souza Santos tinha morrido.
A moça de 31 anos, filha, amiga, mãe de duas crianças, podia ter ficado conhecida por sua alegria e sua vontade de viver. Mas não: Tainara será lembrada (e é importante que jamais nos esqueçamos dela) como a mulher que foi arrastada por um carro dirigido por um homem por um quilômetro na Marginal Tietê, em São Paulo. Um ato de crueldade indescritível. Depois de quase 25 dias de internação, após ter as duas pernas amputadas e passar por várias cirurgias, Tainara morreu na véspera de Natal.
O réu do crime, Douglas Alves da Silva, a teria matado por “ciúmes”, porque “ouviu um não”. E o resumo disso é óbvio: se você for mulher e ousar dizer não para um homem, ele pode te atropelar e te arrastar pelas ruas e te matar.
Poucos dias depois que Tainara foi covardemente atropelada, duas funcionárias públicas do Cefet Maracanã, Allane de Souza Pedrotti Matos e Layze Costa Pinheiro, foram assassinadas no trabalho por um colega que, de acordo com depoimentos à polícia, não aceitava ser chefiado por mulheres.
E a mensagem aqui é óbvia: se vocês ousarem ocupar posições de comando e forem competentes, em vez de agraciadas, vocês podem ser assassinadas.
Na mesma época da morte de Allane e Layze, outra mulher foi vítima de tiros no local de trabalho: Evelin de Souza Saraiva trabalhava em uma barraca de pastel em São Paulo quando seu ex Bruno Lopes Fernandes Barreto disparou cinco tiros contra ela. Ela sobreviveu. Segundo a vítima, Bruno não aceitava o fim da relação.
No Recife, no mesmo dia do atropelamento de Tainara, depois de agredir a companheira Isabele Gomes de Macedo, de 40 anos, Aguinaldo José Alves teria ateado fogo na casa onde estavam a mulher e os quatro filhos: todos morreram. O homem foi preso preventivamente.
E temos muitas mensagens nesse caso: nossos companheiros podem nos matar. E não estamos seguras nem em casa, nem no trabalho, nem em lugar algum.
Esses são apenas alguns exemplos. Mais de mil mulheres foram vítimas de feminicídio em 2025 no Brasil.
No feriado de Natal, enquanto muitos choravam a morte de Tainara, mais mulheres eram mortas. Só no Rio de Janeiro, pelo menos três mulheres foram assassinadas no Natal, em casos que estão sendo tratados como possíveis feminicídios.
Não existe um balanço de todos os casos que aconteceram no feriado no Brasil. Mas vamos lembrar que, em média, quatro mulheres são vítimas de feminicídio por dia no país, de acordo com o Mapa da Segurança Pública de 2025 do Ministério da Justiça e da Segurança Pública – um número altíssimo. Nos feriados como Natal e Ano Novo, esses números tendem a aumentar. Junto com as festas, a bebida e a celebração, vêm o ódio a mulheres, os ataques, as agressões e as mortes.
Reação e união
Sim, nós, mulheres brasileiras, temos muitos motivos para chorar. Mas junto do choro, há também revolta, união e luta. E isso pôde ser visto na despedida de Tainara. Na porta do cemitério onde ela foi enterrada, mulheres e homens, amigos e familiares dela, fizeram uma manifestação. Com camisetas onde estava escrito “tem que respeitar”, elas gritaram por justiça.
“A gente está aqui pra pedir justiça pela Tainara e pelas outras mulheres que morrem todos os dias. Todos os dias a gente vê no jornal uma notícia. Até quando?”, disse Ingrid Rodrigues Barros, de 27 anos, amiga da moça, em um vídeo publicado pelo portal Metrópoles.
É incrível que, mesmo na hora de uma dor dessas, as amigas de Tainara, com lágrimas nos olhos, lembrem de outras mulheres e do perigo que elas e todas brasileiras correm.
A reação forte no enterro de Tainara mostra bem o espírito com que nós, mulheres brasileiras, encerramos o ano: com lágrimas nos olhos, mas unidas e prontas para brigar e gritar ainda mais por justiça e contra a misoginia que mata quatro de nós por dia no país.
Tainara (e nenhuma outra mulher) devia ser assassinada. Mas muitas de nós estamos dispostas a fazer essa história mudar. E, para isso, vamos repetir várias vezes que homens não podem simplesmente matar mulheres quando “contrariados”. Chega.
No início de dezembro, mulheres tomaram as ruas de todo o Brasil pedindo o fim da violência de gênero e do feminicídio, no levante “Pare de nos matar”. O motivo que as uniu foi essa sequência terrível de crimes de ódio contra mulheres, mas esse não foi um movimento exclusivo do Brasil. O feminicídio aumenta no mundo todo. E mulheres respondem unidas e indo às ruas.
Na Argentina, por exemplo, milhares de pessoas foram às ruas em setembro depois que um triplo feminicídio cruel chocou o país. O mesmo aconteceu na África do Sul, onde uma onda de protestos fez com que o governo classificasse a violência de gênero como um “desastre nacional”.
Nós, mulheres, não estamos mais dispostas a assistir passivas pela TV nossas colegas de gênero morrendo. O gosto amargo continua na boca. Mas, como se diz nas ruas: “não pode faltar nenhuma”.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
