Muitos dizem, com razão, que a carta de Trump ameaçando sobretaxar o Brasil em 50% uniu o país. Que ela nos ajude também a nos livrar, de uma vez por todas, do viralatismo.”Povo brasileiro, vamos fazer o mundo ouvir a nossa voz. Coloque o seu agradecimento ao presidente Donald Trump abaixo.” Essa mensagem foi escrita pelo deputado Eduardo Bolsonaro em suas redes sociais pouco tempo depois de o presidente americano anunciar, por meio de uma carta absurda, que taxaria o Brasil em 50% se, entre outras coisas, o país não livrasse o pai dele, o ex-presidente Jair Bolsonaro, de um processo por tentativa de golpe que pode levá-lo para a cadeia.

Eduardo se mudou para os Estados Unidos em março, dizendo-se vítima de uma perseguição, e passou a fazer lobby junto ao governo americano para livrar seu pai da Justiça. Dá para entender que ele tenha ficado agradecido. Afinal, era isso o que ele queria: tentar livrar o pai “custe o que custar”. Difícil é entender como pode haver brasileiro comum que foi lá e fez o que Eduardo pediu. “Thank you, Mr. president, make Brazil free again” (Obrigado, senhor presidente, torne o Brasil livre de novo), respondeu um usuário. Outros preferiram agradecer e, ao mesmo tempo, pedir um green card. Sério.

Qual o grau de complexo de vira-lata de uma pessoa que agradece a um presidente por cobrar uma taxa absurda contra seu país, que pode causar graves problemas econômicos e desemprego? Nesse caso, a viralatice é tão grande que ela está mais para síndrome de Estocolmo, aquele comportamento de quem se apaixona por seu sequestrador.

Esse sentimento de inferioridade é nosso conhecido. E uma prova disso é o fato de termos até essa expressão para explicar o sentimento: o famoso complexo de vira-lata. Basicamente, isso significa se achar pior que os outros, principalmente se o “outro” for da Europa e/ou dos Estados Unidos. Também achamos nosso país pior. Um dos mitos de quem sofre desse mal é achar, por exemplo, que o Brasil é o único país do mundo onde existe corrupção. Não é.

“Descendentes de europeus”

O complexo de vira-lata faz também com que alguns brasileiros se achem superiores a seus compatriotas por serem descendentes de europeus. “Na minha casa nós falamos alto porque somos italianos” – já ouvi isso mais de uma vez de brasileiros que moravam em São Paulo e tinham um bisavô que nasceu na Itália.

Muitas vezes, esses brasileiros descendentes de europeus se sentem mais “enraizados” e “seguidores das tradições” do que os próprios cidadãos que moram a vida toda no país de origem de seus bisavós.

Um exemplo desse tipo de viralatismo viralizou essa semana. Em um vídeo publicado no Instagram, um casal de “influenciadores” catarinenses lista características que uma pessoa deve ter para morar em Santa Catarina. Entre elas está “ser de direita” e “gostar de trabalhar de verdade”. Em certo momento, eles explicam que “são descendentes de europeus”, como se isso os fizesse mais especiais que outros brasileiros.

Para ilustrar esse momento, e mostrar como eles seguem as “tradições alemãs”, eles exibem um “traje típico” da Alemanha, o “Tracht”. Um aviso: moro em Berlim há dez anos e nunca vi alguém usando uma roupa dessas. Pelo que sei, as pessoas usam na Oktoberfest, na Baviera, e só. Sair assim em um dia comum seria o mesmo que um brasileiro vestir uma fantasia de Carnaval em julho para “mostrar que é apegado às tradições brasileiras”.

Estamos em 2025 e esse complexo de vira-lata ainda existe. Mas, mesmo assim, tenho esperanças. Acredito que, nesse momento, a maioria dos brasileiros está indignada com tamanho desrespeito à integridade do Brasil (e isso independe da preferência política). Muitos dizem, com razão, que a carta de Trump uniu o Brasil. Que ela nos ajude também a nos livrar, de uma vez por todas, do viralatismo.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.