Que o trágico feminicídio das funcionárias do Cefet, cometido por um homem que “não gostava de ter chefes mulheres”, sirva para a gente pressionar os deputados pela criminalização da misoginia.Duas mulheres são assassinadas por um colega de trabalho e um dos “motivos” é o fato do assassino não aceitar ter chefes mulheres. Essa frase é tão desesperadora que, confesso, sinto angústia física ao escrevê-la.

O pior: não se trata de ficção, mas de uma realidade bem próxima. Duas funcionárias de uma das escolas federais mais conceituadas do Rio de Janeiro, o Cefet do Maracanã, foram mortas a tiros na sexta-feira (28/11) enquanto trabalhavam. As servidoras públicas são a coordenadora da equipe pedagógica e acadêmica da Direção de Ensino da escola, Allane de Souza Pedrotti Mattos, e a psicóloga escolar Layse Costa Pinheiro.

A polícia aponta como culpado João Antônio Miranda Tello Ramos, técnico administrativo. Ele teria atirado nas colegas e se matado em seguida. Quando falo que o “motivo” para o homem matar as mulheres foi o fato de não aceitar mulheres na chefia, deixo isso entre aspas de propósito. Isso porque relatos apontam, sim, para esse fato. Mas, na verdade, não existe nenhuma “razão” para que uma mulher seja assassinada e nada que justifique isso.

O real “motivo” pelo qual mulheres são mortas por homens é aquele velho conhecido nosso: o ódio às mulheres, a misoginia . No caso das funcionárias assassinadas no Cefet, o ódio às mulheres chefes (quem elas pensam que são?) é uma mágoa a mais nesse caldo misógino e destruidor.

Problema antigo

Todos os casos de feminicídio chocam. Mas o assassinato das funcionárias do Cefet, combinado com o horror do atirador a “chefias femininas”, provoca um terror profundo, desesperador mesmo. “Não confiar em mulher como chefe” e não aceitar ser “comandado por mulher” é um clichê que pode representar desde o machismo clássico estilo anos 1950, até o ódio às mulheres em sua forma mais contemporânea, aquele que se espalha em comunidades “red pill ” e nas redes sociais .

Os “neo misóginos” fazem sucesso retratando mulheres como “más”, “loucas” e se posando de vítimas das mulheres, retratadas como “malvadas e ardilosas”.

É possível que o assassino das funcionárias do Cefet se sentisse vítima de uma “conspiração feminista” por ter chefes mulheres com quem tinha problemas. E sentiu que tinha permissão para matá-las.

Segundo reportagem publicada no portal UOL, ele chegou a ser afastado do serviço e foi transferido por causa da perseguição às mulheres, mas conseguiu retornar, o que mostra um problema interno gigante na estrutura pública.

Mais um detalhe: o feminicida não era um jovem radicalizado, como em geral imaginamos os “incels ” e “red pills”, mas um homem de 47 anos. Sim, existem misóginos violentos e perigosos de qualquer idade ou formação.

Chefe espancada

A violência contra mulheres em posição de chefia é chocante, mas não é exatamente uma novidade. Em 2022, o procurador Demétrius Oliveira de Macedo, de 34 anos, foi preso após ter espancado sua então chefe, Gabriela Samadello Monteiro de Barros, durante o expediente na prefeitura de Registro. Ele não ficou muito tempo preso e ano passado o caso foi arquivado após laudo apontar “esquizofrenia paranoide”.

Acredito, sim, que muitos dos odiadores violentos de mulheres podem ter também transtornos psiquiátricos, mas se ele se organiza como misoginia, ele é perigoso e reflexo de uma sociedade que alimenta ódio contra as mulheres. Ou seja, diagnóstico não é desculpa.

“Ele não trabalhava bem com chefes mulheres, abriu seu próprio negócio. Ele não trabalhava bem com mulheres, então a matou”, escreveu a jornalista Lia Bock no Instagram sobre o caso do Cefet e outros horrores que vimos nos últimos dias. “Nunca tem um motivo, é sempre um feminicídio”, completou.

Concordo. Mas, e agora? Dói e cansa ter que lidar com tanta frequência com tragédias como as das funcionárias do Cefet. Mas precisamos continuar desconstruindo o ódio a mulheres e a tentar educar os garotos mais jovens.

É importante também, acredito, lutar para que conteúdos de ódio contra mulheres sejam banidos das redes sociais. A misoginia não pode ser banalizada. E, a essa altura, acho que todo mundo já deve ter percebido que, muitas vezes, o que é pregado nas redes, vira pesadelo na vida real.

Que o trágico feminicídio das funcionárias do Cefet, cometido por um homem que não gostava de ter chefes mulheres, sirva também para a gente pressionar os deputados pela criminalização da misoginia.

O Senado aprovou um projeto que equipara à misoginia ao crime do racismo . Para virar lei, a proposta ainda precisa tramitar na Câmara dos Deputados. Infelizmente, não faltam motivos para que a gente prove que criminalizar a misoginia é urgente.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.