29/10/2025 - 18:12
É simplesmente impensável que uma operação policial seja conduzida na Faria Lima com os mesmos métodos aplicados nas periferias brasileiras. A diferença de cenário não é apenas geográfica: é social, racial e política.Setenta corpos enfileirados. Famílias desesperadas procurando seus filhos, maridos, irmãos, pais. Famílias desesperadas reconhecendo seus filhos, maridos, irmãos, pais.
Setenta corpos enfileirados em plena praça pública.
Uma fila formada pela dor, desespero e pela ausência do Estado na Praça São Lucas, no Complexo da Penha.
Lençóis floridos, listrados, sem estampas utilizados pra cobrir o horror e o medo de encontrar mais corpos nos becos, vielas e na mata próxima.
Setenta corpos que foram encontrados entre a madrugada e as primeiras horas da manhã de 29 de outubro, o dia seguinte da Operação Contenção, deflagrada nos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, por ordem do governador Cláudio Castro.
Setenta corpos que se somam a outras dezenas que já haviam sido mortos ao longo do dia que trouxe pânico e terror para o Rio de Janeiro. Ao todo, pelo menos 119 morreram.
Desde o dia 28 de outubro, temos testemunhado a maior chacina da história do Brasil desde a redemocratização. Até então, o massacre do Carandiru, ocorrido em 1992 e que resultou na execução brutal de 111 detentos pelas forças policiais paulistas, era o principal símbolo da violência estatal em tempos democráticos.
E, olhando as imagens produzidas na manhã desse dia 29, foi impossível não lembrar da letra da música Haiti, escrita por Caetano Veloso e Gilberto Gil: assim como no Carandiru, todos corpos enfileirados na Vila da Penha são “quase brancos, quase pretos de tão pobres. E pobres são como podres…”
Podridão. Era esse o cheiro que as famílias que buscavam seus familiares tinham que sentir: cheiro de carne humana em decomposição, isso sem falar em corpos mutilados e com indícios de tortura.
A diferença em relação à operação na Faria Lima
“Mas é tudo bandido!” – muitos irão alegar para defender a operação.
E que nome dar para aqueles que foram presos e indiciados na operação policial Carbono Oculto que ocorreu na Faria Lima – um dos maiores centros financeiros do Brasil – há cerca de dois meses? Mais um exemplo que no Brasil a máxima reacionária “bandido bom é bandido morto” só vale se o bandido em questão for pobre e, de quebra, preto.
Vivemos num país que se alimenta da pobreza, mas odeia os pobres.
Enquanto nas favelas as operações policiais resultam em dezenas de corpos estendidos no chão, na Faria Lima a polícia bate à porta de escritórios com ar-condicionado e recebe documentos encadernados.
A diferença de cenário não é apenas geográfica: é social, racial e política. E talvez o que mais assuste não seja o crime em si, mas como estamos acostumamos com essa seletividade perversa da justiça brasileira.
E as razões para isso estão, sem dúvida alguma, na manutenção de hierarquias humanas. O fato é que não somos todos iguais. E o pior é que no fundo, no fundo, sabemos disso.
É simplesmente impensável que uma operação policial seja conduzida na Faria Lima com os mesmos métodos aplicados nas periferias brasileiras. Uma impossibilidade que reflete a mentalidade herdada do racismo científico – e reatualizada pelo racismo neoliberal – que segue moldando a forma como o Estado (e parte da opinião pública) enxerga e trata os corpos pobres e racializados.
Enxugando gelo
Não tenho dúvidas de que as instâncias mais progressistas do país estão e continuarão mobilizadas contra chacinas como essa. Mas, embora seja fundamental apurar os fatos, entender e nomear quem são aqueles homens mortos cujos corpos foram estendidos no chão, auxiliar as famílias, também não tenho dúvida que outras chacinas como essa (um pouco menor, um pouco maior) continuarão fazendo parte das nossas vidas num futuro próximo.
Estamos, há muito tempo, enxugando gelo. E isso é extremamente benéfico para setores específicos da sociedade.
Não é por acaso que a principal forma de ascensão social – a educação de qualidade – não seja um direto garantido à população pobre do Brasil. Muito pelo contrário.
O abandono das escolas públicas não é fruto da negligência, mas sim de uma estratégia deliberada. Não há coincidência alguma com o fato de que a mesma esfera de poder (a estatal) é responsável pela segurança pública (polícia) e pela educação secundarista dos estados brasileiros.
É como se essa esfera tivesse em suas mãos o futuro da juventude no país. Por isso, é possível e desejável manter uma massa “disforme” e descartável de futuros trabalhadores que terão pouca margem de manobra entre se submeter a empregos degradantes e mal pagos, ou ser recrutado pelo crime organizado.
As chamadas “histórias de sucesso” (que podem ser contadas nos dedos de uma mão) são bem-vindas, porque criam a falsa ideia de que basta se esforçar bastante para alcançar seu lugar no topo do capitalismo: o fracasso é sempre culpa do indivíduo, nunca do sistema.
É esse mesmo sistema que viabiliza e legitima as chacinas. O termo, por si só, carrega um peso brutal: remete não apenas à matança violenta de pessoas, mas também ao abate e esquartejamento de porcos.
E talvez não seja mera casualidade. Parte do Brasil aprendeu a enxergar a população pobre sob essa ótica desumanizante — como corpos descartáveis, vidas sem valor, cuja existência pode ser interrompida e dilacerada sem escândalo público, ou com pequenos escândalos. A linguagem não mente: há uma naturalização histórica da violência contra os pobres, como se fossem gado a ser abatido, e não cidadãos com direitos.
__________________________________
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
