03/12/2025 - 7:19
A “PL da Devastação” elimina controles ambientais, ignora a ciência e destrói o que a grande maioria dos brasileiros quer proteger: a natureza.Justamente no momento no qual o Brasil tenta reassumir um papel de liderança internacional na agenda ambiental e climática, o Congresso – dominado por forças conservadoras, ruralistas e setores alinhados à extrema direita – age para sabotar o país. A derrubada dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à PL 2.159/2021 representa um dos maiores retrocessos ambientais desde a redemocratização. Não à toa, o texto ficou conhecido como “PL da Devastação “.
E não são apenas os movimentos ambientais que soam o alarme. Também a Anistia Internacional, setores da Igreja Católica, pesquisadores, cientistas e um relator especial da ONU alertam para as consequências da proposta.
O discurso tenta vender a ideia de “modernização” das regras de licenciamento ambiental . Mas o conteúdo real do projeto revela outra lógica: acabar com os estudos de impacto ambiental e social, justamente o coração de qualquer sistema democrático de proteção ambiental. Pela nova regra, empresas poderão “autorizar” seus próprios empreendimentos por meio de simples autodeclarações: sem análise técnica independente, sem transparência pública e sem participação da sociedade. É a porta aberta para abusos, fraudes e destruição acelerada.
A supressão da participação social é um dos pontos mais graves. Povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais perdem não apenas o direito à consulta, mas também o acesso a informações que lhes permitiriam contestar violações. Sem estudos prévios, resta um vácuo institucional no qual interesses privados passam a prevalecer de forma absoluta.
A PL 2.159/2021 não enfraquece apenas o licenciamento: ela fragiliza pilares elementares do Estado Democrático de Direito.
O impacto concreto pode ser ilustrado de forma simples: imagine um empresário adquirindo uma vasta área numa terra indígena ainda em processo de demarcação – processo conhecido por sua lentidão burocrática e vulnerável à pressão política. Com a nova legislação, bastará uma autodeclaração para desmatar, converter o território em pasto ou instalar monoculturas de alta degradação. Erosão do solo, contaminação de rios, perda de biodiversidade, agravamento do calor e redução das chuvas – todos esses efeitos deixam de ser analisados. E o modo de vida das populações originárias simplesmente desaparece do mapa.
Contra a maioria da sociedade
O ataque legislativo recai principalmente sobre dois biomas cruciais: Amazônia e Cerrado . Ambos já enfrentam pressões históricas; ambos desempenham funções ecossistêmicas essenciais para o regime de chuvas no Brasil e para o equilíbrio climático global. Essa regressão normativa, além de colocar o país no caminho da devastação interna, prejudica os esforços internacionais para limitar o aquecimento global.
A ironia é que até o próprio agronegócio será a vítima. A ciência é unânime: o aumento das temperaturas , a irregularidade das chuvas e a intensificação das secas afetarão profundamente a produtividade agrícola. Hoje, cerca 60% das terras agrícolas brasileiras já apresenta algum nível de degradação. Projeções indicam que esse número pode chegar a quase 75% até 2060, com prejuízos bilionários. A bancada ruralista está destruindo a base material de seu próprio negócio.
No plano jurídico, a perplexidade é igualmente grande. A PL cria insegurança ao invés de solucioná-la: fragmenta competências entre União, estados e municípios; elimina parâmetros mínimos; abre brechas para interpretações contraditórias; e estimula um ambiente normativo caótico. Essa desorganização não é um acidente, mas arte do objetivo central: criar um cenário em que fiscalização se torne inviável. As comunidades tradicionais ficaram expostos a uma anarquia de um capitalismo sem regras.
Não surpreende, portanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) deva ser acionado. Há sólidos argumentos constitucionais para questionar a PL, sobretudo sua violação ao princípio da proibição do retrocesso ambiental que impede o Estado de desmontar proteções essenciais sem motivação constitucional robusta.
Mas talvez o aspecto mais estarrecedor seja outro: a PL 2.159/2021 representa o oposto do que a sociedade brasileira quer. Pesquisas de escala nacional mostram 94% dos brasileiros reconhecem que o aquecimento global é real e já sentem os efeitos das mudanças climáticas , 74% afirmam que a proteção ambiental deve prevalecer sobre o crescimento econômico; mais de 90% consideram fundamental a defesa da Amazônia, mais de 80% da população mundial exige ações mais firmes dos governos em defesa do clima.
Em outras palavras, a população brasileira apoia de forma esmagadora a proteção ambiental. Quem sabota essa agenda é o Congresso, uma instituição hoje blindada contra a vontade popular, capturada por interesses privados e dominada pelas mesmas oligarquias que, há décadas, impõem seus privilégios ao país: homens brancos, ricos, herdeiros de clãs políticos e representantes de setores econômicos poderosos.
O paradoxo persiste: uma sociedade que defende massivamente a natureza e um Parlamento que age sistematicamente para destruí-la. A pergunta inevitável ecoa: por que o país continua elegendo representantes que não refletem seus valores nem seus interesses de longo prazo? Trata-se de um dos enigmas mais persistentes do cenário político brasileiro contemporâneo.
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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha, Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
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