Achar errado que o STF só tenha uma mulher ministra não é identitarismo, e sim questão de lógica: não faz sentido que elas sejam maioria da população, mas só uma as represente na mais alta corte do país.”O macho, adulto e branco, sempre no comando.” A frase de Caetano Veloso, escrita lá nos anos 1980, fica atualíssima quando pensamos nos ambientes de poder de Brasília. Nós, mulheres, somos maioria no país (51,5%, segundo o Censo do IBGE). Pretos e pardos também são maioria (55,5%). Mas quem manda no país? Homens brancos. Ainda. E isso não é um exagero ou forma de dizer. Uma prova: a atual composição do Supremo Tribunal Federal (STF).

A Suprema Corte, popular nos últimos anos pela defesa da democracia no país, é também um retrato (literal) da nossa desigualdade. No momento, a corte é formada por onze ministros. Dez são homens. Há apenas uma mulher, a ministra Cármen Lúcia. Em toda sua história de 134 anos, apenas três mulheres foram ministras do Tribunal. Um escândalo.

Olhando para fotos da corte, a impressão que dá é que ainda estamos no século 19, quando a regra era que mulheres cuidassem dos afazeres domésticos enquanto os homens se ocupavam dos “assuntos sérios da República”.

Estamos em 2025 e esse formato “século 19” não é mais aceitável na corte mais importante do país. É preciso mudar.

Na semana passada, o ministro Luís Roberto Barroso anunciou que vai se aposentar. Na prática, isso significa que o presidente Lula vai ter que indicar um ministro novo para a Suprema Corte. Ele pode, pela primeira vez na história do país, indicar uma mulher negra para o cargo. Ou pelo menos indicar a quarta mulher na história a ser ministra do STF. Mas entendedores dos bastidores de Brasília dizem que a chance disso acontecer é muito pequena, quase mínima. Lula já teve a chance de indicar mulheres duas vezes neste mandato e não o fez: uma das vagas foi ocupada por Cristiano Zanin e outra por Flávio Dino, que ocupou a vaga de Rosa Weber, uma das três mulheres que já foram ministras do STF.

Assim como aconteceu nas outras vezes em que vagas foram abertas, entidades e movimentos fazem campanha e pedem para que o presidente indique uma mulher negra para o cargo. Esse pedido não é um “capricho” ou uma “frescura”, como muitos dos oponentes da ideia tentam fazer parecer. Mulheres negras são a fatia mais vulnerável da sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, representam 28% da população. É justo (e o mínimo) que uma mulher que represente essa camada da população tenha espaço na Suprema Corte.

“Ah, lá vem esses identitários com essa conversa”, reclamam aqueles que discordam da necessidade do STF ter mais mulheres (e, de preferência, mulheres negras). Essa palavra, “identitário”, tem sido usada pejorativamente por setores da esquerda, direita e extrema direita de forma pejorativa para designar quem luta por direitos de populações discriminadas. Mas achar que é errado que apenas uma mulher seja ministra do STF não é ser “identitário”, é apenas defender uma igualdade básica e mínima. É uma questão de lógica. Não faz sentido que mulheres sejam a maioria da população e apenas uma as represente no STF. Simples assim.

Paridade no mundo

Paridade de gênero está longe de ser frescura e, no momento, isso tem sido entendido até por setores conservadores da população. Exemplo: quando foi eleito, o atual chanceler federal da Alemanha, Friedrich Merz, um conservador da União Democrata Cristã (CDU), que tem fama de machista, foi pressionado até dentro do seu partido para ter mulheres em cargos importantes do governo. Resultado: hoje, de 18 ministros, oito são mulheres. No governo anterior, pela primeira vez, houve paridade total, (50% homens, 50% mulheres). No Brasil, no atual governo, de 38 ministros, dez são mulheres. Apesar de pouco, esse é um número recorde.

Nos últimos dias, li muitos comentários de quem acha que ter mulheres na Suprema Corte não precisa ser uma prioridade do atual governo. Muitos diziam que Lula deveria focar na qualidade na hora da escolha (como se não existissem mulheres qualificadas para o cargo!), que o importante era ser alguém “de confiança” (como se não houvesse mulheres confiáveis!). Todos esses argumentos só confirmam o machismo presente em todas as correntes ideológicas.

E tem mais: quando falamos da importância de ter mais mulheres na Suprema Corte, estamos falando de um exemplo. Todos os espaços do país precisam ter lugar para mulheres. O STF, tão importante para o país, deveria ser um exemplo. E não um retrato de como ainda somos machistas, racistas e ultrapassados.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.