12/02/2025 - 15:14
Cenas desesperadoras de incêndio em fábrica de fantasias no Rio revelam a precariedade das condições de trabalho da cadeia – majoritariamente negra – que faz a festa acontecer.À medida que o Carnaval se aproxima, é comum ouvirmos discursos e propostas de autoridades sobre segurança pública. Isso fica especialmente frequente nas cidades brasileiras que têm a festa momesca como um dos pontos altos de suas vidas culturais e turísticas. Há, e deve haver, uma preocupação para que o Carnaval possa ser brincado em segurança. Não só por uma questão ética e moral – afinal, quem seria a favor da violência ou insegurança em pleno Carnaval? –, mas também por uma questão econômica: o Carnaval é uma festa que, no Brasil, movimenta bilhões em dinheiro, inflando assim toda a cadeia do turismo no país; não há motivos para colocar isso em risco.
No entanto, o discurso e a prática sobre segurança no Carnaval geralmente têm destino certo: os foliões brasileiros e estrangeiros. Mas quem conhece, sabe que o Carnaval é um sistema que não acaba na quarta-feira de cinzas. No caso do Rio de Janeiro, que se vangloria de ter “o maior espetáculo da terra”, essa estrutura carnavalesca dura, literalmente, o ano inteiro. Sem dúvida que, quanto mais próximo do Carnaval, mais intenso é o trabalho para que a festa seja brincada da melhor forma, e mais gente envolvida para que esse espetáculo possa entrar em cena e viver sua apoteose.
Acontece que as coxias do Carnaval são bem diferentes de toda maravilhosidade com a qual ele se apresenta. E, nesta quarta-feira (12/02), foi necessária uma verdadeira tragédia para nos lembrar disso.
Por volta das 7h40 da manhã, o Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro foi acionado para rua ocorrência na rua Roberto Silva, no bairro de Ramos, zona norte da cidade. Foram necessários 30 viaturas e mais de 80 homens para conter um incêndio que tomou a fábrica Maximus Confecções, com cenas desesperadoras. Dezenas de trabalhadores tentando salvar suas vidas em meio às chamas, gritando por socorro. Alguns tiveram que tomar medidas drásticas, como pular das janelas.
Felizmente não houve vítimas fatais, ainda que 10 pessoas tenham sido hospitalizadas em condições graves, e que algumas escolas do Grupo de Ouro tenham perdido absolutamente todas as suas fantasias. Ah, sim, a Maximus Confecções é uma fábrica especializada na produção de roupas e fantasias para o Carnaval carioca.
As razões para o incêndio só serão definidas após minuciosa perícia. No entanto, os relatos de alguns trabalhadores da fábrica já nos dão pistas do que teria causado a tragédia.
O que chamou a atenção foi o testemunho de que ao menos 20 trabalhadores estavam dormindo na fábrica quando o incêndio começou. Não se tratava de uma siesta, ou tempo de descanso. Para dar conta da intensa demanda de trabalho às vésperas dos desfiles das escolas de samba, a fábrica funciona 24 horas, e seus quase 100 funcionários trabalham em turnos alternados. As condições, como se pode imaginar, são precárias. Espaços grandes com pouca ventilação, corredores estreitos e, pasmem, a fábrica não tinha o aval do Corpo de Bombeiros para funcionar – e funcionava próxima a uma escola, o que poderia ter causado uma tragédia ainda maior.
Fábricas e barracões sempre por um fio
E essa não é a primeira vez que um incêndio revela a precariedade das condições de trabalho da cadeia que faz o Carnaval carioca acontecer. O mesmo Carnaval que é o “maior espetáculo da terra”. Desde 1992, ao menos quatro carnavais do Rio de Janeiro já foram afetados por incêndios, que por sua vez estavam diretamente relacionados à falta de condições necessárias para a segurança de seus trabalhadores e trabalhadoras. Fábricas e barracões que estão sempre por um fio (ou por uma lambida de fogo). Trabalhadores que não usam equipamentos de segurança, e muitas vezes dobram sua jornada de trabalho, porque o que ganham chega a ser ultrajante.
Apesar de ser uma suspensão da vida cotidiana, nem mesmo a fantasia do Carnaval está imune às desigualdades, descasos e escolhas políticas que organizam o Brasil.
Minha filha de oito anos acompanhou parte das notícias sobre o incêndio, e uma das perguntas que ela me fez foi: “Mamãe, por que quase todo mundo que trabalhava nessa fábrica era negro?”.
Fiquei alguns segundos paralisada frente a essa pergunta, que estava ali, ancorada no óbvio, visível até mesmo para uma criança de oito anos. E disse, com outras palavras, que a falta de segurança daqueles trabalhadores e trabalhadoras era tolerada porque se tratavam de pessoas negras, na sua maioria. E que, no Brasil, esses trabalhadores sempre foram dispensáveis, quando necessário. Ela fechou a cara porque entendeu o recado. O Brasil segue clivado por diferentes castas de trabalhadores, que têm suas condições de vida e trabalho estruturadas (também) pelo seu fenótipo e pela cor da sua pele.
A mão invisível do racismo é tão eficaz, que põe em risco um dos eventos mais comemorados e lucrativos do país. Um evento, que, pro bem e pro mal, tem a cara do Brasil.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.