18/11/2025 - 11:25
Caso da criança de 11 anos vivendo com um homem de 33 não é um caso isolado, mas a realidade de muitas meninas do Brasil ainda hoje, em 2025, o que mostra que a sociedade brasileira ainda é patriarcal estilo “Idade MédiaA história é de dar um nó no estômago e parece ter saído de um filme denúncia sobre os horrores vividos pelas meninas mais vulneráveis do Brasil. Na semana passada, a polícia prendeu um homem de 33 anos acusado de manter uma relação de “marido e mulher” (com muitas aspas mesmo) com uma menina de 11 anos . A relação teria começado há sete meses e quem teria apresentado o acusado de estupro para a vítima (vamos usar as palavras certas) teria sido o pai da criança. Os dois foram presos em Manacapuru, interior do Amazonas.
É inconcebível de todas as maneiras imaginar que uma menina de 10 anos tenha vida de casada, mas, segundo os relatos, ela dormia todas as noites na rede do acusado. A polícia teria, inclusive, como prova, fotos do homem beijando a menina.
Dói ler uma notícia dessas e só esse caso já devia ser o suficiente para causar uma grande mobilização de todos aqueles que dizem se preocupar com a infância e combater a pedofilia. Mas o pior é que o caso da menina de 11 anos vivendo com um homem de 33 não é um caso isolado, mas a realidade de muitas meninas do Brasil ainda hoje, em 2025, o que mostra que a sociedade brasileira ainda é patriarcal, no estilo Idade Média.
O que explica que um pai tenha oferecido a filha de apenas 10 anos em sacrifício para outro homem? Falar apenas que os dois são “doentes” é ignorar as complexidades do caso. Sim, de certa forma eles são, sim, “doentes”, mas por serem fruto de uma sociedade adoentada, onde mulheres ainda são vistas como mercadoria desde a mais tenra idade. Uma prova disso é a frequência com que esse tipo de horror ainda acontece no Brasil.
De acordo com um levantamento divulgado recentemente pelo IBGE, dados do Censo de 2022 mostram que o Brasil tinha 34 mil crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos vivendo em união conjugal. 77% das vítimas eram meninas. A maioria delas vivia na chamada “união consensual”, ou seja, sem registro civil ou religioso. A menina do Amazonas é apenas mais uma na multidão de crianças vítimas desse horror.
Mas esse tipo de “união” (ou melhor, de abuso) não é proibido por lei? Sim, o casamento de menores de 16 anos é proibido no Brasil em todos os casos. Entre os 16 e os 18, ele é permitido mediante autorização dos pais. O problema é que esse tipo de “união abusiva” ainda é vista como natural em muitos cantos do país. Se ninguém denunciar e se esse tipo de abuso ainda for considerado “relacionamento”, eles continuarão a existir.
Além de serem vítimas dessas “uniões” (também conhecidas como abuso em sequência), meninas são as principais vítimas de estupro no Brasil. Você não leu errado. Em 2024, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 61,3% dos estupros ocorridos no ano foram classificadas como “estupro de vulnerável”, ou seja, foram praticados contra crianças de até 14 anos, em sua grande maioria, meninas .
PL da pedofilia
Combater esses horrores a que meninas são submetidas seria mais fácil se a sociedade brasileira, com destaque para nossos representantes que fazem as leis, como deputados e senadores, estivessem dispostos a lutar contra isso. Não parece ser o caso.
No dia 5 de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou, por 317 votos a 111, um projeto que, na prática, torna mais difícil o acesso de menores de 14 anos vítimas de violência sexual e grávidas a serviços de aborto, que, nesse caso, são permitidos por lei.
O projeto derruba uma série de resoluções do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que regulamenta formas para que as crianças e adolescentes sejam tratadas de forma humanizada se precisarem passar por um aborto legal. O documento garante, por exemplo, que elas não precisem, por exemplo, passar por uma delegacia e fazer um BO para ter o direito. Sim, imaginem uma criança que foi estuprada tendo que relatar para a polícia o que passou, olhem o tamanho do trauma.
As diretrizes também dispensam a necessidade da autorização de responsáveis, o que é importantíssimo porque, na maioria dos casos, os estupradores de crianças são membros da família ou amigos. Para entender melhor, é só a gente voltar para o caso da menina de 11 anos que estava vivendo como “casada” com um homem que foi apresentado a ela pelo pai. E se ela tivesse engravidado? O pai teria autorizado um aborto? Provavelmente, não.
É muita crueldade piorar ainda mais a vida das meninas. É preciso, mesmo que inconscientemente, odiá-las. A nós, a parte que se enjoa ao ler todos esses horrores, cabe agir, pressionar deputados e senadores e gritar. Não é possível que meninas com menos de 14 anos continuem “casando” e tendo filhos no Brasil. Isso precisa mudar. Urgente.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.