13/10/2016 - 19:10
O mais recente livro do economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, Trópicos Utópicos, surge em um momento delicado para o Brasil, às voltas com turbulências econômicas, políticas e uma corrupção de níveis alarmantes. Mas a mensagem que emerge da obra, composta de microensaios que se interrelacionam, é positiva: o país tem uma utopia mobilizadora própria, que se revela de tempos em tempos e terminará por impulsioná-lo a constituir um modelo de vida alternativo em relação aos já consolidados. O livro, que passa por áreas como ciência, religião, ambiente e economia, é o tema desta entrevista.
PLANETA – A ciência se tornou uma espécie de religião?
GIANNETTI – Há uma tentativa de extrair dos resultados da ciência respostas para anseios e inquietações de ordem religiosa e metafísica. Tento argumentar no livro que essa maneira da ciência de abordar os resultados é um equívoco. A ciência jamais oferecerá as respostas de cunho existencial e ético que o ser humano procura. Wittgenstein, filósofo austríaco, colocou muito bem isso em 1920, quando argumentou que mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham sido respondidas, as questões da vida não serão sequer tocadas. Os problemas de ordem existencial e ética que nos inquietam não são passíveis de abordagem pelo método da investigação científica. A ciência se revelou uma arma incomparável na destruição de crenças falsas, mas deixa um vazio, porque não é capaz de atender esse anseio que nasce com o ser humano de encontrar sentido.
PLANETA – Falando a um jornalista brasileiro nos anos 1970, o dalai lama disse que melhor seria que cada pessoa desenvolvesse sua própria religião. Esse ponto de vista está mais dentro do conceito de religião que o sr. defende?
GIANNETTI – Acredito que as pessoas espontaneamente têm crenças de natureza religiosa, o que não significa, necessariamente, configurar uma doutrina fechada. O que incomoda, no fundo, são religiões institucionalizadas, com um credo fechado e hierarquias de autoridade em relação à doutrina. Prezo em demasia a autonomia do ser humano para aceitar a submissão da mente a qualquer tipo de credo oficial.
PLANETA – O sr. mostra no livro uma visão algo desiludida no que se refere à evolução da natureza humana e da civilização. Não há progressos a comemorar?
GIANNETTI – Meu desapontamento é em relação ao que a civilização ocidental prometia quando do Renascimento e do Iluminismo. Havia então uma promessa de vidas mais livres, plenas, felizes e dignas de serem vividas, que infelizmente o tempo se encarregou de refutar. Hoje, precisamos buscar alternativas. A civilização ocidental, baseada na ciência, na tecnologia e no crescimento econômico, trouxe enormes conquistas e benefícios para a humanidade, como os avanços na medicina e na saúde pública. Mas não foi capaz de cumprir a promessa de realização da felicidade humana que trazia consigo. Dado o impasse em que a humanidade se encontra hoje no tocante ao meio ambiente, é mais do que hora de buscarmos alternativas a essa civilização.
PLANETA – Como seria possível aplicar preços aos impactos que decisões econômicas causam em quem não é considerado nessas medidas (as chamadas “externalidades”)?
GIANNETTI – Parece-me profundamente infeliz designar por “externalidade” um problema capital do sistema de preços. Não há nada de externo nisso; pelo contrário, não há nada mais interno à existência do que o meio ambiente dentro do qual existimos. O tempo mostrou que a economia de mercado regida pelo sistema de preços, mesmo com seus enormes méritos, padece de uma falha central: ela não dá os incentivos corretos para um metabolismo responsável entre a sociedade e o meio ambiente. O sistema de preços é completamente omisso no tocante aos impactos cumulativos da ação humana sobre o meio ambiente e o uso de recursos naturais não renováveis. Portanto, chamar isso de externalidade me parece um equívoco, e talvez não gratuito, porque mostra com quão pouca seriedade foi levada em conta essa deficiência central do sistema de preços. O caminho correto seria corrigir esse sistema, fazendo com que o ônus do impacto ambiental das nossas escolhas como consumidores e produtores se refletisse nos preços relativos dos diferentes bens e serviços. Mas esse é um processo que está apenas engatinhando, e é muito difícil chegar a um acordo internacional com uma calibragem adequada dos preços para que eles reflitam e deem os incentivos corretos à ação humana.
PLANETA – Para o sr., o PIB, por suas limitações, não pode ser considerado uma métrica do sucesso. Aprova alguma fórmula existente para medir isso?
GIANNETTI – O mundo é complexo em demasia para caber em uma única métrica quantitativa, seja ela qual for. Diferentes culturas incorporam diferentes visões de felicidade, sucesso e bem-estar. Portanto, não há simetria, uniformidade de critérios para se definir o que é sucesso e o que é fracasso. Toda essa ênfase numérica deixa de lado coisas centrais na existência humana e que não se prestam a um tratamento quantitativo e, em consequência, reducionista.
PLANETA – O sr. indica no livro que o Brasil pode propor um modelo de vida alternativo em relação ao dos países desenvolvidos, em que a razão apolínea e a paixão dionisíaca de índios e africanos convivem em harmonia. Já há pistas dessa fórmula? Por enquanto, parecemos atolados em um pântano moral e ético.
GIANNETTI – Aqui é preciso separar o circunstancial da conjuntura do permanente da cultura. A originalidade brasileira já está presente na nossa vida cotidiana, nas nossas relações pessoais, no modo como lidamos com o tempo, na disposição em viver intensamente o momento sempre que possível. Essa utopia brasileira é um projeto em construção, que ao longo do tempo tem idas e vindas. Em alguns momentos o Brasil parecia estar mais próximo de encontrar um caminho belo e original. Um exemplo é o fim dos anos 1950, quando vivemos um espetáculo de florescimento cultural, com o surgimento da bossa nova, do Cinema Novo, da arquitetura moderna, a construção de Brasília, o próprio futebol se revelando ao mundo. Foi um momento de muita afirmação cultural. Infelizmente, essa promessa de uma utopia nacional não teve sequência e colapsou de modo até dramático, com a renúncia do presidente Jânio Quadros, a inflação, o desequilíbrio fiscal e, depois, o golpe militar.
PLANETA – Houve um momento semelhante recentemente?
GIANNETTI – Sim, até certo ponto semelhante, quando o governo Lula parecia ter encontrado um caminho de inclusão social, de afirmação cultural, de capacidade de organização, a ponto de sediar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada. O planeta percebia o Brasil como uma estrela do mundo emergente. Novamente perdemos esse momento, em grande parte por incompetência na política econômica. Os desastrosos segundo mandato de Lula e primeiro mandato de Dilma Rousseff nos levaram a essa situação de “pântano moral”, tal a descrença no futuro do país. Mas repito: não vamos confundir o circunstancial de uma conjuntura ruim com o permanente de uma cultura que é bela e ainda tem muito a oferecer.
PLANETA – Nesse sentido, a Operação Lava Jato é decisiva na história do país em termos de sustentabilidade moral e ética?
GIANNETTI – A ação do Judiciário no Brasil, desde o mensalão, e agora no petrolão e na Lava Jato, é uma enorme conquista que permitirá aprimorar as formas de gestão e de exercício do poder público no país. O câncer da corrupção vem com o Brasil há muito tempo e se agravou nos últimos anos. Como todo câncer, se ele existe, é melhor trazê-lo à tona e tratá-lo, por mais sofrido que seja o processo. O Brasil está vivendo isso. Temos toda a oportunidade de amadurecer, crescer e ganhar confiança na nossa capacidade de resolver nossos problemas dentro da lei.
PLANETA – Quando o Brasil se tornaria esse modelo alternativo?
GIANNETTI – Não é algo que se possa determinar no calendário gregoriano… Essa construção está sendo permanentemente trabalhada – nas conquistas, nos reveses, nas mudanças e no permanente repensar do nosso futuro. Devemos lembrar também que o Brasil não é o único país dotado de um centro de gravidade cultural próprio. Há uma utopia tropical brasileira, que vai sendo construída ao longo de muitas gerações – certamente desde Oswald de Andrade, Gilberto Freyre e tantos outros, a tropicália, o modernismo. Assim como o Brasil tem esse sonho de uma felicidade que reflita o que ele é, e não o que vem imposto, outras nações têm centros de gravidade cultural, como México, Índia e Rússia. Então, o que temos de valorizar é a possibilidade de diferentes culturas viverem seus valores e não se sujeitarem à condição de cópia imperfeita ou canhestra de um padrão que elas jamais conseguem alcançar e que hoje é ditado fundamentalmente pela cultura norte-americana.