06/02/2020 - 6:00
A meditação da mente plena, mais conhecida como mindfulness, começou a ser aplicada no Ocidente para tratamento da saúde ainda nos anos 1970 e já foi objeto de vários estudos científicos, que atestam sua eficiência. No Brasil, ela começa a penetrar numa área inesperada para muitos: a polícia. Desde 2016, a Guarda Civil Metropolitana de São Paulo e a Polícia Militar paulista contam com integrantes que passaram ou estão passando por cursos de mindfulness. A experiência ainda é nova, mas os resultados positivos já são perceptíveis, conta nesta entrevista Sonia Beira Antonio, coordenadora do Centro Mente Aberta da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cujo programa de mindfulness é aplicado aos policiais.
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PLANETA – Como o programa Mente Aberta começou?
SONIA – O Mente Aberta, ou Núcleo de Meditação Mindfulness para a Saúde, é um programa de extensão do Núcleo de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina, da Unifesp, dedicado a promover e divulgar a meditação mindfulness aplicada à saúde no Brasil. Estamos lá há cinco anos, no campus Santo Amaro da Unifesp. Temos parceria com o Serviço Único de Saúde (SUS) para receber pacientes com indicação para tratamento de câncer, depressão, ansiedade, dores crônicas e transtornos alimentares, entre outros problemas. Também atendemos públicos específicos, com programas para profissionais da saúde, atletas e a Polícia Militar de São Paulo e a Guarda Civil Metropolitana (GCM) de São Paulo.
PLANETA – Como foi o contato com essas instituições policiais?
SONIA – Nós os procuramos com um programa cujo foco é a redução da ansiedade e do estresse e a prevenção da exaustão física e mental decorrente da profissão. Fomos muito bem recebidos, de início pela GCM. Falamos com uma inspetora no comando da região de Santo Amaro e desenvolvemos um contrato de parceria divulgado do Diário Oficial do município. As negociações começaram em junho de 2016, e os grupos foram trabalhados a partir de agosto. A cada término de um grupo inicia-se outro. Há uma avaliação, uma entrevista inicial e uma palestra de sensibilização; depois realizamos o programa de oito sessões – uma a cada semana, de preferência, com duração entre 90 e 120 minutos – e, a seguir, uma finalização. No primeiro e no último encontro, entregamos um caderno de pesquisa pelo qual avaliamos a saúde do participante – ansiedade, nível de estresse, de atenção, de qualidade de vida, dados relacionados à profissão dele. Depois dessa intervenção, analisamos os dados do caderno para verificar se o programa foi eficiente. Após seis meses, fazemos uma nova avaliação. Essas pesquisas proporcionarão material para artigos científicos na Unifesp.
PLANETA – Quando veio a Polícia Militar?
SONIA – Eu a contatei na mesma época em que falei com a GCM, mas foi mais difícil descobrir lá os líderes com quem tratar para iniciar o projeto. O comandante que nos abriu as portas para esse processo também é da região de Santo Amaro. Num segundo momento, a GCM viu que esse programa era muito importante e não poderia se limitar a Santo Amaro. Então, falamos com novos líderes no projeto, que têm comando sobre toda a região metropolitana de São Paulo, para montar os novos grupos num lugar mais centralizado, a que participantes de todas as regiões pudessem chegar. Com a Polícia Militar, buscamos seguir uma ideia parecida. Nosso desejo é fazer parte da Academia de Polícia, para que eles já saiam de lá equipados com essas técnicas e tenham um dia a dia mais saudável e uma qualidade de vida melhor.
PLANETA – Esses grupos são realizados durante o horário de trabalho?
SONIA – Sim, o que é muito bom, porque os participantes podem usufruir dos benefícios do programa durante esse horário. Eles recebem um certificado de conclusão.
PLANETA – Quantos participantes integram cada grupo? E quantas pessoas já passaram pelo programa?
SONIA – Cada grupo inicia-se em média com 20 a 25 integrantes. Até agora, 70 pessoas da GCM e 60 da Polícia Militar passaram pelo programa.
PLANETA – Quem vai para o grupo? São pessoas indicadas pelos superiores?
SONIA – Há duas formas. Na Polícia Militar, o programa é divulgado e o interessado pode se inscrever; também fazemos uma palestra de sensibilização. Há policiais de ambos os sexos; a maior parte é do sexo masculino (sargentos, tenentes, capitães e coronel). Na GCM também são guardas de ambos os sexos, a maior parte mulheres (guardas-civis, inspetores). Lá fizemos de início uma palestra para cerca de cem pessoas em um evento, das quais 60 se interessaram e se inscreveram para os grupos. Houve sorteio para ver quem ficaria na espera, e aproveitamos isso como montagem de grupos-controle – eles passam pela avaliação, mas sem sofrer a intervenção, e nós os comparamos com quem está passando pela intervenção.
PLANETA – Foi preciso tomar alguma providência prévia diferente para os policiais em relação a outros praticantes?
SONIA – Não. Com relação aos grupos de policiais, há confidencialidade nos dados, nas avaliações – todo esse material é avaliado pelo grupo, e não individualmente. Isso é feito justamente para proteger o sigilo das informações e colocado para que os participantes se sintam tranquilos e à vontade com o grupo.
PLANETA – Como é o trabalho realizado nos grupos em geral?
SONIA – Usamos técnicas e dinâmicas vivenciando os conceitos para manejo da atenção, do estresse, dos pensamentos. São técnicas muito simples usadas para consciência corporal, respiração, e dadas passo a passo para que os participantes integrem tudo isso e o coloquem em seu cotidiano. No programa no qual os policiais se encaixam, o foco está em redução do estresse, da ansiedade, da exaustão física e mental. Há outros programas mais específicos no Mente Aberta, como para dor crônica, depressão ou ansiedade crônicas em níveis mais elevados e transtornos alimentares.
PLANETA – Outras polícias usam mindfulness no mundo?
SONIA – Sim, em vários lugares, como no Canadá e nos Estados Unidos.
PLANETA – Quais são os resultados obtidos com os policiais?
SONIA – Já colhemos todos os dados, mas ainda estamos avaliando o material. Isso não deve demorar, porque temos interesse em divulgar esses indicadores em trabalhos científicos. Como, além de coordenar os programas de mindfulness do Mente Aberta, sou instrutora e tenho contato direto com os policiais participantes, observo que eles se ressentem muito da visão da sociedade em relação ao seu trabalho. Eles nos dizem que passam por muitas coisas no seu dia a dia e o que só aparece para a mídia e o público são atos de pessoas da corporação que, de algum modo, não agiram adequadamente. De certa forma, eles se sentem muito perseguidos, injustiçados. Sua vida é muito difícil. Eles e suas famílias estão em risco. Muitos não usam uniforme ou não o mostram na sua vida normal, por medo. Eles têm dificuldade para dormir, por conta do contato com a violência. É um público que precisa de muita atenção. Alguns depoimentos dos participantes do programa são tocantes. No fim das sessões, eles percebem que têm mais consciência do seu corpo, do que está acontecendo à sua volta, de como, frente a uma atitude a ser tomada rapidamente, começam a agir em relação às situações, e não a reagir, o que é muito diferente – às vezes, pode ser um impulso mais agressivo. Eles passam a ter um olhar um mais distante, o que lhes facilita agir.
PLANETA – Polícias de outros estados procuraram vocês?
SONIA – A Polícia Militar de Tocantins e a Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul, por meio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, estão fazendo projetos em parceria com o Mente Aberta. Já temos lá nossos protocolos, estruturas e instrutores. Também nos procurou o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo. Eu e o Marcelo Demarzo, fundador do Mente Aberta, estivemos com esses juízes para elaborar como seria o programa para os magistrados e servidores.
PLANETA – Qual é a categoria profissional que mais os procura?
SONIA – Muitas companhias nos procuram, ou pelo Mente Aberta ou por nossas empresas particulares, para implantar o programa para seus colaboradores, assim como escolas particulares. Estamos também tentando colocar o programa em escolas públicas, destinado a alunos, professores, funcionários, diretoria, coordenadores… Queremos que ele chegue até os pais. Alguns países já têm programas de mindfulness na grade escolar. Esses programas também estão em hospitais – no Brasil, o Albert Einstein e o Sírio-Libanês têm –, como parte complementar de seus tratamentos.