Na mesa de um boteco ou até mesmo em alguns institutos de pesquisa espalhados pelo mundo, uma opinião é compartilhada: a cerveja é uma das melhores invenções da humanidade. Porém, gostos à parte, a maioria dos apreciadores da bebida, uma das mais antigas e populares do planeta, não imagina que a cerveja foi essencial para a construção da sociedade como a conhecemos hoje. A história da bebida – não tão conhecida como ela – está estreitamente ligada a momentos fundamentais da evolução, como a própria criação da civilização, passando por revoluções no campo e na cidade e, principalmente, atrelada ao desenvolvimento da ciência.

Entre as inovações que tiveram origem por conta da cerveja, uma que se destaca é a pasteurização, que foi criada pelo químico francês Louis Pasteur, em 1864. Ele foi motivado a investigar os processos fermentativos quando um fabricante de cerveja local, cujo filho era um dos alunos de Pasteur, pediu seu conselho sobre o que poderia estar acontecendo quando a bebida por eles produzida azedava. Pasteur decidiu utilizar um microscópio para estudá-la e, dessa forma, identificou os microrganismos responsáveis por converter o álcool em ácido lático (as bactérias láticas) que, quando formado, comprometia o gosto da bebida. Com base nessa descoberta, Pasteur desenvolveu um processo para matar esses microrganismos indesejados e, dessa forma, evitar que a cerveja azedasse.

Descoberta do dióxido de carbono

“O processo de pasteurização consiste basicamente em aquecer os alimentos e bebidas em temperaturas acima de 60°C por um determinado tempo (chamado de binômio tempo × temperatura) e depois baixar bruscamente a temperatura do alimento para evitar que ocorram deteriorações pelo calor. Esse processo, empregado até os dias de hoje, reduz de maneira significativa o número de microrganismos deteriorantes e patogênicos em sucos, cerveja, leite e diversos outros alimentos. Os estudos de Pasteur sobre a fermentação de bebidas acabaram impactando também a área da saúde, uma vez que deram origem à ‘teoria dos germes das doenças’, que poderiam infectar humanos e animais. Esse novo horizonte surgido a partir dos trabalhos de Pasteur abriu caminho para o desenvolvimento de métodos antissépticos em cirurgia e para as pesquisas de Alexander Fleming, que culminaram com a descoberta da penicilina, o primeiro antibiótico amplamente empregado na medicina”, revela Stanislau Bogusz Junior, professor da área de Química dos Alimentos no Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP.

O especialista conta que outras descobertas na área de química também possuem relação com a cerveja. Um exemplo é o caso do renomado químico do século 18 Joseph Priestley, que morava próximo a uma cervejaria e notou que o gás liberado pela fermentação das misturas caía em direção ao solo, indicando que ele era mais pesado que o ar. A observação levou à descoberta do dióxido de carbono e, consequentemente, do oxigênio.

François Louis Jaques, “Camponeses de Friburgo no bistrô”. Crédito: https://archive.is/HuunX Beurret & Bailly/Wikimedia Commons
Conceito de pH

Outra importante descoberta na área de química e que está relacionada à cerveja é o conceito de pH, introduzido através de pesquisas do químico dinamarquês Søren Sørensen, que foi o chefe do laboratório da cervejaria Carlsberg, em Copenhague, na Dinamarca. Sørensen estudou o efeito da concentração de íons de hidrogênio da água cervejeira sobre a estabilidade da espuma da cerveja. Ele introduziu a escala de pH como uma forma simples de expressá-la em 1909 e medir a acidez de um composto. E tem mais: a maneira como refrigeramos comidas e bebidas também foi idealizada graças às pesquisas do engenheiro alemão Carl von Linde, que em 1894 desenvolveu um sistema de refrigeração artificial quando trabalhava na cervejaria Spaten Brewery, em Munique, na Alemanha. Antes da invenção de Linde, blocos de gelo eram utilizados para resfriar a cerveja e evitar que ela estragasse por ação do calor.

A história da cerveja ainda se mistura com uma importante descoberta na área de estatística por meio da criação, ainda no século 20, do chamado “Teste t de Student”, um cálculo que, resumidamente, atesta se determinado resultado ou número é confiável. O responsável pelo seu desenvolvimento foi o químico inglês William Gosset, que aos 23 anos foi contratado pela cervejaria Guinness para propor uma maneira de monitorar a quantidade de leveduras durante a fermentação da cerveja. Até então, para realizar esse processo, era preciso realizar uma série de cálculos, o que aumentava as chances de erro. Com o intuito de simplificar e agilizar o procedimento, mantendo a precisão da análise, Gosset criou o Teste t – hoje aplicado como teste estatístico nas mais diferentes áreas do conhecimento. “Como no passado a cervejaria Guinness teve problemas com a publicação de pesquisas que acabaram revelando segredos industriais, a cervejaria proibiu que seus funcionários publicassem quaisquer pesquisas, independente do conteúdo. Em função disso, Gosset não tinha como publicar a descoberta do seu método estatístico com o seu nome. Então, o cientista usou o pseudônimo ‘Student’ para as suas publicações. A Guinness só descobriu esse fato depois da morte de Gosset”, conta Stanislau.

De mãos dadas com a evolução do mundo

Inventada há milhares de anos na região onde hoje está localizado o Iraque, a cerveja é o resultado de um complexo processo que envolve uma série de reações químicas. De acordo com a legislação brasileira, cerveja é a bebida produzida com água a partir do malte da cevada, lúpulo – planta responsável pelo amargor, e pela fermentação da levedura. Muitos estudiosos acreditam que o cultivo de cevada teria começado por volta de 9000 a.C., graças ao apreço pela cerveja. O professor Stanislau conta que, segundo algumas teorias, o crescimento da demanda pela cevada utilizada para fabricar cerveja associado ao aumento da importância da agricultura para os povos outrora nômades pode ter contribuído indiretamente para o surgimento das cidades.

Na época dos povos antigos da Mesopotâmia, o consumo da cerveja também impulsionou a criação de métodos para produzir seus ingredientes e conservar o produto final. Uma junção entre ciência e arte. Muitas culturas enxergavam a cerveja como um presente de Deus e, com o passar dos anos, ela tornou-se parte essencial da dieta das pessoas e, mais do que isso, um símbolo social. “Naquela época, quando terminava o processo de fermentação, as leveduras iam para o fundo do jarro, formando uma biomassa rica em vitaminas, como as do complexo B, e eram consumidas depois da bebida”, comenta o professor. A bebida era tão importante para a sociedade que, por volta de 2300 a.C., foi usada como moeda para, por exemplo, financiar a construção das pirâmides do Egito.

No início, a cerveja não era nada parecida com aquilo que conhecemos hoje, ou seja, a bebida não era visualmente convidativa. Produzida de maneira artesanal, a cerveja era turva, continha restos de grãos e era servida em grandes jarros de barro ou canecas de madeira. “Até o surgimento em 1842 da cerveja Pilsen – cerveja de tom amarelo palha ou dourado e com uma espuma muito bonita –, a bebida não era visualmente agradável. Foi a partir dessa época que os fabricantes de vidro começaram a fazer copos e taças transparentes para beber a cerveja e também degustá-la com os olhos”, lembra o professor do IQSC.

Interior de cervejaria. Crédito: Elekes Andor/Wikimedia Commons
Aumento de fertilidade

No passado, embora pareça loucura nos dias atuais, as pessoas preferiam tomar cerveja em vez de água por questões de saúde, especialmente em épocas de surtos de doenças: “Não havia sistemas de tratamento de água e esgoto como conhecemos hoje em dia e, como existe uma certa quantidade de álcool na composição da cerveja, certos microrganismos patogênicos presentes na água não tratada não eram encontrados na cerveja. Ou seja, naquela época, tomando cerveja as pessoas adoeciam menos”, conta Stanislau. Além disso, por conta dos efeitos da bebida no sistema nervoso central, as pessoas ficavam mais comunicativas e descontraídas, o que fazia com que a fertilidade aumentasse (maior número de filhos) entre os casais que consumiam a bebida regularmente. Relatos históricos mostram ainda que durante as Grandes Navegações, nos anos 1400, os europeus que tentavam chegar à Ásia para explorar os territórios enfrentavam dificuldades para transportar água nas longas viagens e, por isso, também enchiam os navios com barris de cerveja.

Após milhares de anos, mesmo com a introdução de novos costumes e valores, a cerveja manteve-se como uma grande estrela no cenário mundial, sendo uma das responsáveis por estimular, por exemplo, as revoluções agrícola e industrial americanas. Antes de Henry Ford desenvolver a montagem de carros em série, Michael Owens criou a primeira máquina automática, em 1904, para produzir garrafas de cerveja usando ar pressurizado. A bebida também fez parte do dia a dia de personalidades como filósofos e líderes de diversos povos. Karl Marx, autor do Manifesto Comunista – um dos manuscritos políticos mais influentes do mundo –, era um grande apreciador de cerveja.

Apaixonado pela história e, principalmente, pela química da cerveja e de seus ingredientes, o professor Stanislau lembra que, ainda hoje, surgem novas descobertas, novos sabores e estilos de cerveja, muitas vezes, a partir de resultados de pesquisas científicas. Neste sentido, uma das novidades mais recentes no Brasil está ligada à produção de um dos ingredientes fundamentais para a fabricação de cerveja: o lúpulo.

Lúpulo brasileiro

Segundo o docente, há menos de uma década, acreditava-se que não era possível produzir lúpulo com qualidade química e sensorial para fabricação de cerveja no Brasil, uma vez que a planta normalmente é cultivada em países de clima frio e com maior fotoperíodo, como é o caso de Alemanha e Estados Unidos. Entretanto, existem algumas iniciativas para a produção de lúpulo em diferentes cidades das regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste do Brasil, que derrubaram o mito da impossibilidade de se cultivar e produzir a planta no país. Essas iniciativas têm gerado grande expectativa para que o Brasil caminhe rumo à autossuficiência da produção dessa importante matéria-prima para a indústria cervejeira.

Para se ter uma ideia da demanda de lúpulo no país, o setor cervejeiro produz aproximadamente 14 bilhões de litros de cerveja ao ano e, em função disso, o país ocupa o terceiro lugar no ranking dos maiores importadores de lúpulo do planeta. Somente em 2015, o Brasil importou cerca de 4 mil toneladas de lúpulo, a um custo de mais de R$ 200 milhões de reais.

“Nós implementamos as metodologias oficiais de análise química e sensorial de lúpulo em nossos laboratórios, com a finalidade de contribuir com o desenvolvimento da cadeia produtiva de lúpulo no Brasil. Até o presente, orientamos dois alunos de mestrado que desenvolveram suas pesquisas sobre a fitoquímica e características sensoriais do lúpulo brasileiro e também trabalharam no desenvolvimento de novos métodos miniaturizados de preparo de amostras para análise química de lúpulo. Existe um vasto campo para pesquisas na área, uma vez que, a cada ano, novos agricultores estão começando a produzir lúpulo no país. Além disso, os agricultores estão conseguindo tirar de duas a três safras por ano”, comemora o professor.

Fica a pergunta: o que mais a cerveja nos reserva?