12/03/2025 - 12:25
País árabe teve sua pior onda de violência desde a queda do ditador Assad. Parte foi impulsionada por falsificações feitas com IA e imagens antigas manipuladas em redes sociais, que inflamaram os combates na vida real.”Estão incendiando o vilarejo agora”, relatou um usuário sírio no Facebook. “Qual vilarejo?”, perguntou outro.
“Por favor, queremos que os tiroteios parem para que possamos enterrar os corpos que estão enchendo nossas ruas”, disse outra pessoa em Jableh, próxima à cidade costeira de Latakia, onde aparentemente teve início a violência que matou cerca de 800 pessoas no último fim de semana.
“Estou em Jableh. Não há nada errado. Não há tiroteio”, escreveu outro homem, aumentando a confusão.
Depois que apoiadores do ditador deposto Bashar al-Assad lançaram ataques às novas forças de segurança sírias no final da semana passada, a Síria viveu sua pior onda de violência desde a queda do regime anterior no início de dezembro. Na segunda-feira, a situação havia se acalmado, na maior parte, mas a violência deixou centenas de mortes, segundo observadores.
O fim de semana passado também marcou a pior onda de desinformação na Síria desde o início de dezembro, afirmam pesquisadores da organização síria de checagem de fatos Verify-Sy.
“Observamos um aumento significativo”, disse à DW Zouhir al-Shimale, pesquisador e gerente de comunicações da entidade. “A coordenação online entre atores maliciosos atingiu seu nível mais alto desde a libertação da Síria.”
Na semana passada, “a desinformação estava intimamente ligada à coordenação da vida real no local”, disse al-Shimale. “Em salas de bate-papo e mensagens diretas privadas, atores maliciosos incitaram os alauítas (minoria que habita predominantemente a costa síria) e outras minorias a fugir, alertando sobre um genocídio iminente enquanto encorajavam os homens a pegar em armas e atacar postos governamentais.”
A Verify-Sy também notou o uso crescente de inteligência artificial generativa para manipular filmagens e alterar vozes para produzir “conteúdo altamente provocativo e gráfico”.
Algumas das fotos e vídeos postados de crimes de guerra e assassinatos eram reais. Mas alguns desses materiais eram antigos e mostravam forças do regime de Assad cometendo crimes de guerra, como apontaram alguns sírios que os reconheceram por se lembrarem da primeira vez que os viram.
Algumas postagens que lamentavam as mortes de pessoas locais eram genuínas. Em outras, indivíduos declarados nas redes como assassinados apareceram mais tarde, negando que tivessem mortido e, em alguns casos, dizendo que sequer estavam na Síria.
O papel das redes sociais
A desinformação é avassaladora na Síria por vários motivos.
As redes sociais no país “servem como uma fonte crucial de informação em meio à ausência de uma imprensa formal ou confiável e independente”, explica Noura Aljizawi, uma ativista síria e pesquisadora sênior da Escola Munk de Temas Globais e Políticas Públicas da Universidade de Toronto.
Aljizawi, cuja especialidade é a intersecção entre tecnologia e direitos humanos, também aponta para uma “falta de comunicação oficial do governo interino, o que deixa a comunidade lutando contra a incerteza e a vulnerabilidade”.
Também há pontos de vista conflitantes de diferentes comunidades sírias. Moradores pró-Assad usaram desinformação para ampliar divisões sectárias e pedir que sua comunidade não se reconcilie com o novo governo sírio. Mas, como um ativista apontou, muitos ex-revolucionários também querem acreditar tão fervorosamente no novo governo que alguns foram rápidos em argumentar que as notícias de crimes cometidos pelas novas forças de segurança sírias devem ser todas “falsas”.
O governo sírio disse desde então que criará uma comissão independente para investigar potenciais crimes de guerra por quaisquer partes e relatou ter feito duas prisões.
“O aumento da desinformação e do discurso de ódio online alimenta a violência e aprofunda as divisões”, disse Razan Rashidi, diretor da organização de advocacia sediada no Reino Unido, The Syria Campaign, à DW.
“A desinformação se tornou tão ruim que a verdade se perdeu e a negação dos crimes se tornou comum. As pessoas têm medo de falar em solidariedade às vítimas ou desafiar o governo interino por medo da reação negativa que receberão nas mídias sociais. Isso é profundamente preocupante e muito perigoso em um momento em que as comunidades deveriam estar se unindo.”
Interferência estrangeira
Além disso, a desinformação também está sendo usada por atores externos que buscam suas próprias agendas, principalmente contra o novo governo sírio.
Tanto Aljizawi quanto a Verify-Sy notaram que o Irã e redes iranianas em lugares como Iraque e Líbano exercem influência. O novo governo sírio expulsou do país as forças iranianas que apoiavam o regime de Assad.
Os especialistas afirmam que Rússia e Israel também desempenharam um papel em campanhas de desinformação contra o novo governo. Comentaristas de direita nos EUA usaram as mídias sociais para promover opiniões islamofóbicas, acusando o novo governo sírio, liderado por indivíduos com ligações anteriores ao extremismo islâmico, de crimes de guerra.
“Isso ficou evidente quando figuras como Elon Musk e [o comentarista político de direita americano] Tucker Carlson amplificaram a desinformação total sobre a Síria, alavancando a rede perfis no X para promover essas narrativas”, acrescenta Al-Shimale.
Para ele isso é novo e perigoso. “A amplificação por figuras grande importância e redes coordenadas significa que [a desinformação] molda o discurso público, pressiona os formuladores de políticas e influencia as percepções internacionais da transição da Síria.”
Desinformação sectária vinda do Iraque
A DW enviou mensagens a vários usuários nas redes sociais que se descreveram como não sírios e postaram informações que foram posteriormente desmascaradas. Apenas um, cujo perfil dizia que ele estava baseado no sul do Iraque, respondeu.
O usuário, que aceitou compartilhar informações na condição de anonimato, disse à DW que trabalhava sob instruções de uma sala de operações de mídia administrada pelo que é conhecido como Forças de Mobilização Popular do Iraque, ou PMF.
Essas são milícias, originalmente formadas por comunidades muçulmanas xiitas no Iraque para combater o grupo extremista “Estado Islâmico” (EI), integram agora a segurança e o governo do estado do Iraque. Alguns grupos dentro do PMF são bem conhecidos por manterem contatos mais próximos com o Irã e são considerados parte do mesmo eixo apoiado pelo Teerã que incluem o Hezbollah no Líbano e os houthis no Iêmen.
“Eles me dão as postagens e eu as publico”, disse o usuário à DW. “Confio muito nas lideranças e são eles que verificam as notícias”, explicou, acrescentando que usuários como ele recebem entre 20 e 30 dólares (R$ 126 e R$ 190) por postagem.
“A maioria dos que trabalham nessa área está desempregada, ou incapacitada por causa de conflitos, ou são mulheres cujos maridos morreram na guerra”, continuou a pessoa. De acordo com o usuário, os valores que os agentes de mídia social iraquianos recebem dependem, por exemplo, de em quais idiomas eles podem postar e seu alcance, com alguns influenciadores conhecidos recebendo mais de 100 dólares por postagem.
Os usuários trabalham por dinheiro, mas o usuário com que a DW conversou admitiu que também há um aspecto político nesse trabalho. Ele, um muçulmano xiita, disse que seu grupo considera todos os muçulmanos sunitas, incluindo os da Síria, como seus inimigos e adversários do Irã, país de maioria xiita, que, segundo fiz o usuário, “é o salvador desta região”.
A pessoa também justificou seu trabalho utilizando outro argumento, que também é falso, de que o novo governo sírio é próximo de Israel, dos Estados Unidos e da Europa, todos os quais eles veem como inimigos do Irã.
Ele admitiu que a foto do perfil em sua conta não era real. A DW não conseguiu verificar completamente a identidade da pessoa. No entanto, suas respostas estão de acordo com investigações anteriores sobre a proliferação de conteúdo pago por interesses políticos no Iraque.