Ao concentrar esforços no combate ao Comando Vermelho sem plano concreto, governo arrisca desequilibrar o cenário criminal no Rio e favorecer nova expansão de milícias e facções rivais, advertem especialistas.A megaoperação contra o Comando Vermelho (CV) foi celebrada por autoridades como um dos maiores golpes já desferidos contra o crime organizado. Mas, por trás dos números oficiais – mais de uma centena de mortos e um arsenal apreendido – cresce um risco estrutural: o enfrentamento a apenas uma facção pode realinhar o centro da disputa entre grupos criminosos e dar início a uma nova guerra por controle de território e tráfico de drogas no Rio de Janeiro, advertem especialistas.

Ao todo, o estado possui três grandes facções, sendo o Comando Vermelho a maior delas, além das milícias. Todas disputam o controle do território como modo de aumentar as receitas, que podem ser provenientes da venda de drogas, extorsão, roubo de cargas, dentre outros meios.

Dessa forma, apesar da capilaridade nacional do Comando Vermelho, a necessidade de repor pessoal nos Complexos do Alemãoe da Penha, alvos da polícia nesta semana e considerados o quartel-general da facção, pode desfalcar outras áreas dominadas – abrindo um flanco para que esses demais grupos lutem pelo domínio dos pontos de tráfico – sem vantagem para o Estado.

“Sem dúvidas [há o risco]. Essas disputas por território têm uma dinâmica própria e difícil de prever. Mas o que é certo é que operações, como a que ocorreu, cujo impacto na estrutura do CV é modesto, não têm um significado substancial na ‘recuperação’ ou ‘reocupação’ de territórios por parte do Estado, como se apresenta como objetivo do governo”, diz o professor de Criminologia e Direito Penal da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, Antonio Martins.

Comando Vermelho cresceu nos últimos anos

De acordo com uma pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), em parceria com a ONG Fogo Cruzado, as milícias chegaram a controlar quase 60% do território da capital do Rio de Janeiro, enquanto que o Comando Vermelho possuía cerca de 11%, e demais facções, 4%.

Segundo Pablo Nunes, cientista social e coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), essa expansão territorial da milícia ocorreu com a organização de Wellington da Silva Braga, conhecido como Ecko. Com a morte dessa liderança, as milícias passaram por um vácuo de poder e o CV, mais recentemente, começou a ganhar terreno novamente.

Desde então, o grupo criminoso vinha ampliando sua influência e atualmente domina mais da metade das áreas controladas por facções ou milícias na região metropolitana do Rio.

“A partir desse processo [da morte de Ecko] a gente tem o avanço do Comando Vermelho. Ele, sim, empodera e fortalece suas posições e abre flancos de disputa territorial com os grupos milicianos. É nesse sentido que a gente teve esse fortalecimento do Comando Vermelho visto agora”, conta.

Além disso, em algumas localidades, também houve a fusão de atividades entre milícia e as facções.

“O que observamos é uma certa convergência entre milícia e tráfico. Mais traficantes extorquem e milícias começam a traficar – o que ocorria menos antes. Há uma diferenciação maior entre o tráfico e milícia, não são iguais, mas não tão diferentes”, conta Ignácio Cano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Laboratório de Análise da Violência da instituição.

Dentre outros fatores, esse crescimento do CV também conta com uma composição histórica. Para José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e estudioso do crime organizado há mais de três décadas, a formação de relações e de percepções do mundo que o CV tem é muito mais próxima às dimensões das camadas populares do que as de outras facções.

“O Comando Vermelho aprendeu a dialogar com as camadas mais pobres e se apoia nelas em sua reação contra o sistema. Essa reatividade nasce da miséria e de um discurso que se opõe às estruturas de poder, ao Estado e à lógica capitalista. Assim, o grupo consolidou uma postura mais contestatória e combativa diante das forças de segurança e da ordem social dominante”, diz.

Segundo Alves, apesar desse posicionamento, CV é permitido pela estrutura de segurança pelo montante movimentado – que chega nas mãos de atores do Estado. “O Comando só existe e só é permitido pela estrutura de segurança pública a partir disso”, afirma.

Vácuo

A megaoperação buscou prender Edgar Alves Andrade, conhecido como Doca, líder do CV, e atingir esse crescimento da facção. Além da não prisão da liderança, o efeito colateral pode ser o aumento de conflitos armados por poder pelo Rio de Janeiro.

“Eu acho que a curto prazo, ninguém irá tentar entrar [no Complexo do Alemão] pois ali é o coração do CV, mesmo com todas as perdas terríveis, com tantas mortes. Mas é possível que o CV tenha que deslocar pessoas de outros lugares para a região, abrindo espaço para que a milícia ou facções rivais tentem tomar outros locais”, analisa Ignácio Cano.

De acordo com especialistas ouvidos pela DW, a falta de um diagnóstico profundo da situação de domínio territorial e do desenvolvimento de estratégias eficazes para o “day after” por parte do poder público faz com que a operação se mostre ineficaz para reduzir a influência do CV no local.

“Se a estratégia continuar sendo operar com essas operações, com essas ações militarizadas de incursão em favelas, apenas e somente, a gente vai ter pouca mudança no cenário de domínio do Comando Vermelho no Rio”, afirma Pablo Nunes.

Além disso, na avaliação de Ignácio Cano, da UERJ, a operação pode ainda desencadear uma mudança de tática do CV e um aumento do financiamento a novas munições e treinamento de táticas para enfrentar o poder público. Por isso, o Estado precisa se fazer presente com um projeto multifatorial e de longo prazo.

“O Estado precisa tomar regiões menores, com contingentes menores, e permanecer para recuperar o controle territorial, com a filosofia das UPPs. A volta à tradição de invasão periódica, em uma escala maior, dessa estratégia de confronto é terrível”, diz.

Para Antonio Martins, sem a presença constante do Estado, uma revisão na política de guerra às drogas e a possibilidade de benesse econômica aos moradores locais, não haverá a possibilidade de sucesso no controle dos territórios dominados pelo crime por parte das autoridades.

“O fracasso dessa política criminal conduz à corrupção das instituições estatais, tanto no sentido de as próprias polícias agirem à margem da lei, tornando as fronteiras entre legalidade e ilegalidade porosas, permeáveis”, completa.