Prisões de traficantes poderosos mostram que a investigação e cooperação institucional podem ser muito mais eficazes que operações letais sem resultados duradouros, apontam especialistas.”A prisão foi possível graças a uma megaoperação de inteligência envolvendo rastreamento de telefones, vigilância da favela pelo novo dirigível da polícia e a ajuda do Disque-Denúncia”, informou o jornal O Globo em 20 de setembro de 2002, quando o traficante conhecido como Elias Maluco, responsável pela morte do jornalista Tim Lopes, foi preso. Na reportagem, outra frase publicada chama atenção: “Nenhum tiro foi disparado”.

A prisão de Elias Maluco é um marco na história policial do Rio de Janeiro e foi resultado de um trabalho de investigação silencioso, com grande contingente de policiais, monitoramento de comunicações e infiltração de informantes – o que evitou um banho de sangue como o que o estado viu em 28 de outubro durante a Operação Contenção, que deixou um saldo de 121 mortos.

A Operação Contenção, realizada nos complexos de favelas cariocas do Alemão e da Penha, foi a ação policial mais letal da história do Brasil, superando até mesmo o massacre do Carandiru. O governo fluminense afirma que queria prender o chefe da facção criminosa Comando Vermelho na região, Edgar Alves Andrade, conhecido como “Doca”, que nunca chegou a ser de fato capturado.

Para especialistas ouvidos pela DW, a prisão de Elias Maluco e de outros criminosos célebres mostram que o Estado já foi capaz de unir planejamento e cooperação para prender líderes do tráfico sem mortes. Mas argumentam que essa eficiência se perdeu com o enfraquecimento da inteligência e a decisão política de priorizar operações midiáticas e de confronto.

“A possibilidade de prender determinados criminosos sem tiroteio sempre existiu e continua existindo, isso não se perdeu, basta querer. Se houver inteligência, há a possibilidade de localizar as pessoas no momento em que elas não podem se defender”, diz Ignácio Cano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Laboratório de Análise da Violência da instituição.

“E, se a força policial tiver que entrar num local, entra com um contingente muito grande de efetivo para tentar inibir, justamente, um contra-ataque armado, provocando a fuga dessas pessoas para outro local, onde vão ficando mais vulneráveis e, finalmente, haverá a possibilidade de prisão”, completa.

Casos emblemáticos

A prisão de Elias Maluco – sem nenhum tiro disparado – não foi um ponto fora da curva. Outros grandes líderes de facções criminosas que operam no Rio de Janeiro também foram presos sem grandes confrontos.

Em 25 de abril de 2000, o jornal Folha de S. Paulo noticiava a prisão de Marcinho VP, chefe do tráfico pelo CV do morro Dona Marta, no Rio. Ele ganhou destaque após Spike Lee revelar que pagou traficantes comandados por VP para conseguir filmar, no morro, cenas do videoclipe de “They Don’t Care About Us”, de Michael Jackson.

“Marcinho VP, 26, foi preso às 15h no beco da Boa Fé, no alto do morro. Desde o começo da tarde, 24 homens do Bope (Batalhão de Operações Especiais) da PM faziam uma varredura do Dona Marta em busca do traficante. Segundo a PM, não houve resistência armada nem troca de tiros, mas Marcinho VP teria tentado subornar os policiais, oferecendo R$ 5 mil em dinheiro, mais um fuzil AR-15 e duas pistolas”, dizia a reportagem.

Outros dois traficantes famosos também foram capturados sem o uso de operações midiáticas e que resultaram em centenas de mortos. Em 2011, Nem da Rocinha, chefe do tráfico em uma das mais famosas favelas da cidade, foi preso em um porta-malas de um carro após tentar fugir de um bloqueio policial que impôs meses de cerco aos criminosos.

Já Rogério Avelino de Souza, o Rogério 157, que foi aliado e rival de Nem, era o então traficante mais procurado da cidade e foi capturado na favela do Arará, zona portuária, durante uma operação conjunta que mobilizou cerca de 2,9 mil agentes das polícias e das Forças Armadas em seis favelas do Rio. Não houve confronto.

Inteligência sem força excessiva

Robson Rodrigues, que foi chefe do Estado-Maior da PM e coordenador das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), participou de grande parte dessas operações, em diferentes níveis táticos.

Para ele, as operações atuais, como a Contenção, priorizam o espetáculo, resultando em fugas e prisões pontuais, quando poderiam ter sido conduzidas de forma mais ampla e estratégica.

“Não surpreendemos na bala. Surpreendemos na inteligência”, diz Rodrigues, que é também doutor em ciências sociais e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ). “Dava-se uma chance ou para se entregar ou fugir, mas não tinha o confronto, dado que o objetivo era reconquistar o território e reconstruir as relações de confiança [da PM com a população local através das UPPs]. Falhamos em algum momento, mas tinham objetivos claros, informações claras sobre os criminosos, com a inteligência conectada.”

Rodrigues relembra a captura de Elias Maluco. Segundo o ex-comandante, que participou da busca como um quadro de inteligência, a prisão ocorreu após meses de paciência, reunindo informações coletadas por fontes e o uso de tecnologias para rastrear o criminoso.

“Quando surgiu a oportunidade de prisão, já tínhamos uma equipe frequentando o mesmo ambiente que Elias Maluco frequentava e as informações foram sendo validadas, começaram a se fechar, com um nível alto de previsibilidade. Pessoas e mídia se mobilizaram, até a tomada da decisão da tentativa de prisão”, relembra.

Já em relação à prisão de Nem, o ex-chefe da PM do Rio de Janeiro afirma que o cerco à Rocinha e demais favelas deixou o chefão do tráfico sem alternativa de confronto – impelindo-o, em vez disso, a tentar uma fuga.

“Todas as favelas [dominadas pela ADA, facção de Nem] tinham operações de cerco e também foram oferecidas todas as possibilidades para ele se entregar. Ele deveria estar recebendo informações que todas as favelas da ADA estavam em diligência, o cerco foi se fechando”, diz.

O que fazer?

Essas prisões, que marcaram uma época de aposta na investigação e na pacificação, contrastam com o atual ciclo de operações violentas e com poucos resultados práticos.

Um relatório publicado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro analisa que a divisão institucional e organizacional da inteligência no RJ foi desestruturada a partir de 2019, com a extinção da Secretaria de Estado de Segurança e a reorganização da Subsecretaria de Inteligência sob a Polícia Civil, gerando confusão de atribuições e enfraquecimento da integração entre os órgãos de inteligência.

Além disso, a organização civil Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial aponta que dos cerca de R$ 10 bilhões investidos em segurança, o estado previu apenas R$ 46 milhões em investimentos na “polícia técnico-científica”.

Sem tantos recursos e alinhamento, especialistas apontam que é mais difícil realizar operações como as que ocorreram no passado.

Para Ignácio Cano, da UERJ, uma operação policial bem-sucedida deve, antes de tudo, minimizar o confronto armado e maximizar prisões com provas consistentes, cumprindo mandados e apreendendo armas. O ideal é que também recupere o controle territorial – algo que só é possível com a permanência das forças após a incursão, como foi tentado na época das UPPs, mas deixou de ocorrer nos últimos anos.

“Na época das UPPs e da celebração da Copa do Mundo e da Olimpíada, a prioridade justamente era tentar evitar banhos de sangue, porque não ficaria bem convocar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada no meio de um banho de sangue. Hoje a prioridade é exatamente o contrário, é gerar banhos de sangue. Sangue, megaoperações com muitas vítimas. Isso mudou, não é porque a polícia perdeu a capacidade de fazer essas prisões”, diz.

Para ele, evitar o confronto não é algo que se alcança só com mudança da cultura policial. “O problema é mudar as elites políticas e as pessoas na população geral que apoiam esse tipo de abordagem”, diz.

Já Rodrigues ressalta que “o troféu não pode ser a matança”, e abordagens violentas ou não serão, sempre, uma opção da gestão das polícias. “Há outras possibilidades de fazer prisões interessantes. Evidentemente, esse jogo é criminoso, violento, humilhante, então as pessoas quando veem operações como essa última, têm a impressão que vão se livrar [do crime]. O modelo das UPPs teve falhas, sim, mas os resultados foram muito melhores, haja visto os números de confronto, que foram reduzidos”, argumenta.