10/04/2023 - 12:41
Segundo uma estatística divulgada em fins de março pela polícia alemã, 41,1% dos que distribuem conteúdos pornográficos envolvendo crianças e adolescentes são, eles próprios, menores de idade. Em muitos casos, sequer estão conscientes de que compartilhar tais materiais no WhatsApp, Instagram, Snapchat e outras plataformas online é cometer um crime.
A cifra disparou na Alemanha o alarme para o grau de infiltração da pornografia no cotidiano dos jovens e até mesmo crianças. E aqui é importante fazer uma distinção crucial: pornografia infantil e juvenil mostra atos de violência sexualizada e violação de fronteiras envolvendo menores. Os especialistas usam o termo “imagens de abuso infantil”, e produzir, distribuir ou proporcionar acesso a elas é um delito criminal. Pornografia entre adultos, por sua vez, é legal, mas disponibilizá-la para menores constitui igualmente crime.
Embora tenha colocado a ministra do Interior Nancy Faeser numa posição incômoda, a divulgação da estatística não surpreendeu, em absoluto, a psicóloga e psicoterapeuta Tabea Freitag: para ela, trata-se de um “fenômeno iceberg”.
Pois quem consome e compartilha conteúdos de abuso sexual infantil em geral se dessensibilizou, após assistir a horas e horas de pornografia adulta – embora, segundo o Artigo 184 do Código Penal alemão, também seja ilegal disponibilizar a menores de 18 anos tal tipo de material.
“Em média, as crianças têm seus primeiros contatos com pornografia aos 11 anos, em grande parte por terem seus próprios smartphones e, com frequência, serem deixadas sozinhas com suas experiências na internet”, relata a diretora do Centro de Dependência de Mídias de Hanôver.
“Estamos testemunhando uma enorme crise de abuso na sociedade, embora seja um tabu: expor crianças a pornografia é uma forma de abuso sexual, tem um impacto maciço sobre seu desenvolvimento psicossocial e sexual.”
Pornôs transmitem imagem distorcida de sexo
Freitag conhece famílias cujas crianças reproduzem para os irmãos as cenas vistas em vídeos pornográficos. Durante a pandemia de covid-19, ela recebeu telefonemas de genitores e assistentes sociais preocupados pois, após meses consumindo pornografia, agora as meninas estavam se oferecendo como objetos sexuais, enviando fotos e vídeos pessoais para homens.
Há também cada vez mais meninas e jovens que vivenciam violência em seus relacionamentos sexuais, mas mesmo tempo se sentem sob enorme pressão para cumprir expectativas impingidas por visões distorcidas do sexo.
“Afinal, pornografia é feita, em primeira linha, para homens. A experiência mostra que ela muda o modo como os meninos percebem as meninas, suas colegas de classe passam a ser cada vez mais vistas como objetos sexualizados.”
“As garotas, por sua vez, se sentem obrigadas a fazer certas coisas, mesmo achando que são superdolorosas ou nojentas, por pensar que é o que se espera delas, e elas têm medo de ser vistas como pudicas, e talvez até perder a relação”, explica a psicóloga.
As pesquisas confirmam essa avaliação: numa publicada em janeiro de 2023 pelo Children’s Commissioner for England, 47% dos entrevistados de ambos os sexos, entre 18 e 21 anos, afirmaram que “as meninas ‘contam com que’ o sexo envolva agressão física”; enquanto para outros 42% a maioria delas até “gosta” de uma agressão sexual.
Em outra consulta realizada nos Estados Unidos, 13% das jovens sexualmente ativas entre 14 e 17 anos revelaram ter sofrido estrangulamento durante o sexo, e que conteúdos pornográficos sugeriam ser esse um componente natural da atividade social.
“Meus colegas mais jovens do nosso departamento Return, que vão às escolas para combater o consumo de pornografia, me contam que os adolescentes ficam gratos de alguém estar finalmente falando sobre o assunto”, conta Freitag. “É um desafio enorme para eles, pelo qual merecem respeito, pois são a primeira geração que cresce com todo esse conteúdo livremente acessível, e tem que lidar com ele.”
Empurrando a responsabilidade para os jovens
Diante de situação tão alarmante, certos peritos apelam para que os smartphones sejam proibidos para menores de 14 anos. Outros propõem campanhas de conscientização nas redes sociais, rádio e televisão. Alguns pesquisadores, por sua vez, são a favor de que se equipem os jovens para lidarem melhor com a pornografia online. Para Tabea Freitag, contudo, fortalecer a “competência midiática” não é a solução.
“Costuma-se apelar para esse termo quando os adultos não querem assumir sua responsabilidade de proteger as crianças de conteúdos que violam limites pessoais, são abusivos e traumáticos. Isso coloca a responsabilidade nos estreitos ombros infantis, encarregando-os de aprender, por si mesmos, a refletir, se proteger, e fazer coisas de que nem os adultos são capazes. É como ensinar a uma criança de dez anos como um carro funciona, e aí pô-la no carro e deixar dirigir na autoestrada.”
Freitag é pessimista quanto às perspectivas de mais proteção no futuro, pois a pandemia já mostrou quão baixo o bem-estar infanto-juvenil está na lista de prioridades. Mas o problema principal, frisa, é a pornografia seguir sendo assunto tabu, com estudos mostrando como os adultos que a consomem estão menos interessados em proteger as crianças. Para a especialista, um bom começo seria as instituições de ensino passarem a prestar mais atenção.
“Nas escolas, a política é digitalização em primeiro lugar. Na prática, porém, isso geralmente significa: proteção infantil em último. Seria possível, e uma decisão política, obrigar as firmas fornecedoras a instalarem filtros nos tablets destinados a escolas. O mínimo seria levar a sério o Artigo 184 do Código Penal alemão, não introduzindo nenhum tablet até que filtros eficazes estejam instalados e configurados.”
“Verificação etária com um clique é piada”
Uma figura promissora nessa luta é Tobias Schmid, diretor do Departamento Estadual de Mídia da Renânia do Norte-Vestfália, sediado em Düsseldorf. Há anos ele tem aplicado sérios golpes nas plataformas online, a fim de impedir que sigam confrontando os menores com materiais pornográficos violentos.
Agora o Tribunal Superior de seu estado deliberou que esses websites não preenchem os requisitos para proteção infanto-juvenil, e não bastará mais eles pedirem que os usuários confirmem sua maioridade com um clique.
“A pornografia, em si, não é proibida, mas tem que haver verificação de idade”, afirma Schmid. “No momento só há um botão que diz: ‘Sim, tenho 18 anos’. Isso não é um sistema de verificação, é uma piada, e claro que não basta. Sabemos que há bastante tempo já existe um sistema, eles só precisam aplicá-lo com mais rigor.”
As plataformas de pornografia ainda estão tentando ganhar tempo, temendo que mecanismos de verificação etária espantem seus usuários adultos. Para Schmid, tal tática de procrastinação não passa de um descaramento e um atrevimento sem igual. Ele tem esperanças de que o veredito na Renânia do Norte-Vestfália contribua para mais proteção, não só na Alemanha como em toda a Europa.
“Juntamente com autoridades reguladoras de Luxemburgo, Áustria, Itália e França, apelamos à Comissão Europeia para agir contra as plataformas de maior alcance, que têm o status de very large, com mais de 45 milhões de usuários”, prossegue Schmid. “Sempre se precisa de um pouco de tempo para um processo adquirir velocidade no começo, mas agora é irrefreável.”
Para ele, a iniciativa chega até atrasada, uma vez que os jovens já não acessam a internet através de computadores e sob supervisão paterna, mas por seus telefones celulares – dos quais, atualmente na Alemanha, quase 90% dos menores entre 10 e 12 anos possui um.
Importante, segundo o especialista em mídia, foi a conscientização crescente de que mesmo a internet pode ser submetida a regras vinculativas, pois, embora ofereça tantas oportunidades, ela também é um local de ódio, instigação à violência, crimes e imagens de abuso de menores. Tobias Schmid aposta especialmente em duas medidas.
“Em primeiro lugar, instruir as operadoras de cartões de crédito para que deixem de oferecer seus serviços a essas plataformas – como já acontece em relação a jogos de azar, por exemplo. E em segundo, a possibilidade de sanções sérias, como multas ou confisco de lucros. Bloquear o acesso, como já podemos fazer, é uma ingerência profunda no direito fundamental à liberdade midiática – o que, realmente, deveria ser um recurso extremo, para as emergências absolutas.”