Diversos especialistas consideram o país uma autocracia eleitoral, onde há um regime autoritário apesar de eleições. Processo de corrosão da democracia iniciado por Hugo Chávez foi aprofundado por Nicólas MaduroHá 24 anos, o regime chavista comanda a Venezuela. Ao longo desse período, foram promovidas mudanças que minaram a independência do Judiciário e do Legislativo, sufocaram a oposição, silenciaram a imprensa independente e desencadearam uma grave crise política e socioeconômica.

Diversos especialistas consideram o país um exemplo do processo de corrosão interna da democracia e de estabelecimento de um regime autocrático pela via eleitoral. Essa transformação ocorreu gradualmente a partir de políticas implementadas após a eleição de Hugo Chávez, em 1998.

Na época, a Venezuela enfrentava pobreza, corrupção e desigualdade social – um cenário que favoreceu Chávez, um jovem militar “outsider” que participou de uma fracassada tentativa de golpe de Estado em 1992 e prometia limpar a política e promover a justiça social.

A eleição de Chávez interrompeu o ciclo da alternância de governos baseado em apenas dois partidos – a Ação Democrática (AD) e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei) –, que vigorava desde o fim da ditadura de Marco Pérez Jiménez, em 1958.

Novo governo e nova Constituição

Pela tentativa de golpe, Chávez passou dois anos preso, porém foi anistiado em 1994 e, então, lançou-se na carreira política. Após ser eleito com 56,2% dos votos, o jovem militar assumiu a presidência em 1999. Já no seu primeiro ano de governo, Chávez realizou um referendo sobre a convocação de uma Assembleia Constituinte para redigir uma nova Constituição, substituindo assim o texto de 1961. A ampla maioria dos venezuelanos apoiou a ideia.

Chávez foi reeleito mais duas vezes e, pela Constituição, deveria encerrar seu governo em 2013. No entanto, esse não era seu plano. O líder venezuelano propôs uma emenda constitucional para permitir a reeleição ilimitada. Após uma primeira derrota, ele conseguiu em 2009 a aprovação popular num novo referendo sobre o tema, abrindo caminho para sua permanência no poder.

Melhorias sociais e gestão econômica controversa

A era Chávez foi marcada por um processo de distribuição de renda e melhoria de alguns índices sociais, como a diminuição da pobreza, queda da mortalidade infantil e redução da desigualdade. Em um relatório de 2014, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) cita a Venezuela como um dos países da região que tiveram “baixas mais notórias” na incidência de pobreza multifuncional entre 2005 e 2012, onde a taxa caiu de 32% para 19% em áreas urbanas no período.

País rico em petróleo, o governo Chávez usou as receitas das exportações da commodity para financiar programas sociais. Apesar da dependência do país desse recurso, não foram feitos investimentos significativos no setor.

A política econômica chavista também não promoveu o desenvolvimento agrícola e industrial. Nacionalizações de fábricas, expropriações de empresas e propriedades rurais e o controle de preços contribuíram para o sucateamento da indústria local. O país passou então a depender cada vez mais de importações, inclusive de alimentos.

A crise econômica que se delineava com essa gestão controversa acabou estourando no governo de Nicólas Maduro. Com a morte de Chávez em 2013, seu sucessor foi eleito presidente com uma margem apertada de votos. No ano seguinte, o país entrou em recessão econômica, impulsionada também pela forte queda do preço internacional do petróleo.

Medidas de Maduro contribuíram ainda mais para aprofundar o colapso econômico do país e desencadear uma crise política. O chavista costuma atribuiu esse cenário às sanções impostas ao país pelos Estados Unidos e pela Europa, a partir de 2015.

A crise levou ainda milhões de venezuelanos a deixar o país. A Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e Migrantes da Venezuela estima que 7,1 milhões de venezuelanos fugiram do país desde 2014, sendo que 5,9 milhões destes foram para países da América Latina.

O caminho para o autoritarismo

O sucessor de Chávez deu continuidade à concentração de poder e ao controle das Forças Armadas, com a nomeação de militares como ministros. Também promoveu perseguição a opositores e à imprensa livre, impulsionada por uma lei de 2010 que possibilitou que o governo suspendesse ou revogasse concessões de meios de comunicação.

“Sob a liderança do presidente Chávez e, atualmente, do presidente Maduro, o acúmulo de poder no Poder Executivo e o fim de garantias de direitos humanos permitiram que o governo intimidasse, censurasse e processasse seus opositores”, já denunciava a ONG Human Rights Watch em 2014.

Maduro vem usando ainda a violência para reprimir protestos que eclodiram contra seu governo a partir de 2014. Em 2021, o Tribunal Penal Internacional (TPI) abriu uma investigação sobre possíveis crimes contra a humanidade cometidos no país.

O regime chavista também pôs em prática diferentes estratégias para minar a independência do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ). Entre elas o aumento do número de cadeiras na Corte, a prorrogação de mandatos de ministros leais ao regime e a destituição de figuras que tomaram decisões que desagradaram o governo. De acordo com a Human Rights Watch, o Judiciário do país deixou de ser um poder independente em 2004.

Apesar do curso autoritário, as eleições parlamentares de 2015 pareciam ter interrompido esse processo, com a oposição obtendo a grande maioria dos assentos na Assembleia Nacional e encerrando os 16 anos de controle governista da Casa. No entanto, Maduro passou a governar ignorando o Legislativo.

Em 2017, o Supremo dominado pelos chavistas suspendeu as prerrogativas da Assembleia Nacional controlada pela oposição e assumiu suas funções, numa ação descrita como “golpe de Estado” pelos críticos do regime.

O Instituto Variedades da Democracia (V-Dem), um grupo de pesquisa independente sediado na Universidade de Gotemburgo, na Suécia, é um dos que considera a Venezuela uma autocracia eleitoral.

Eleições fraudulentas

Num pleito marcado por irregularidades e que não foi reconhecido pela oposição e por grande parte da comunidade internacional, Maduro foi reeleito em 2018. Logo após o chavista assumir o segundo mandato, no início de 2019, o então presidente da Assembleia Nacional, o opositor Juan Guaidó se declarou presidente interino da Venezuela.

Guaidó foi reconhecido pelos Estados Unidos e por mais 60 países, além da Organização dos Estados Americanos (OEA). O país foi tomado então por grandes protestos contra Maduro, que atraíram milhares de venezuelanos. O “governo interino” deveria funcionar até que eleições livres fossem realizadas depois da renúncia de Maduro.

Mesmo com os grandes protestos e a grave crise econômica, a oposição liderada por Guaidó não conseguiu obter apoio dos militares e do Judiciário e Maduro reforçou ainda mais seu controle sobre as instituições.

Sem resultados e com a comunidade internacional deixando de reconhecer Guaidó, a oposição acabou com o “governo interino” no final do ano passado, encerrando a tentativa de isolar Maduro e promover uma mudança de governo no país.