Sequência de ataques com armas de fogo, como o de Aracruz (ES), e de episódios de racismo preocupam educadores.Em sentença divulgada em 7 de dezembro, o juiz Felipe Leitão, da Vara da Infância e Juventude do Espírito Santo, determinou a internação por três anos do jovem de 16 anos que matou quatro pessoas e feriu outras 12 em um ataque a tiros a duas escolas na cidade de Aracruz no fim de novembro.

A medida, estipulada no tempo máximo permitido em lei, será cumprida no Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo. O jovem será avaliado a cada seis meses por assistentes sociais e psicólogos. Caso não ofereça mais risco à sociedade, ele poderá sair antes do previsto. A decisão será da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Vitória.

O caso foi mais um episódio envolvendo ataques a tiros em escolas brasileiras em 2022 — os outros ocorreram em Barreiras, na Bahia, com uma pessoa morta, e outro em Sobral, no Ceará, com três mortes e 13 feridos. Nos últimos 20 anos, foram 12 atos violentos dessa natureza, segundo dados do Instituto Sou da Paz.

Além disso, episódios com pichações de suásticas, frases xenófobas e racistas, assim como ofensas nas redes sociais, como o caso do estudante negro do colégio Porto Seguro, em Valinhos, elevaram o temor de especialistas e educadores acerca da consolidação do discurso de ódio contra minorias dentro das escolas do país.

Gênese do ódio

De acordo com Ângela Soligo, doutora em psicologia e professora da pós-graduação na Faculdade de Educação da Unicamp, o cenário de intolerância visto nas escolas é multifatorial, mas pode ser explicado a partir de alguns episódios. Um deles é a ascensão do PT ao poder e a crise econômica de 2014, no governo de Dilma Rousseff.

“Era preciso construir uma narrativa para justificar a queda do poder de consumo, sobretudo da classe média, e esse discurso recaiu sobre os direitos sociais dos pobres, dos negros que entraram na universidade e que melhoraram de vida, dos marcos civilizatórios na defesa dos indígenas e das pessoas LGBTQIA+… Isso criou uma culpabilização de determinados grupos sociais muito perigosa e que reflete nos ataques que temos visto dentro das escolas”, afirma.

Luciana Tognetta, professora do Programa de Pós Graduação em Educação Escolar da Unesp, ressalta que esse cenário ajuda a disseminar a concepção de pessoas com “menor valor”, funcionando como um álibi para atos e falas violentas. “Isso aconteceu na Alemanha de Hitler, com os judeus e outros grupos minoritários, e está se repetindo não só no Brasil, mas em outros países do mundo cuja extrema direita se fortaleceu. Não é aleatório.”

Durante o ataque em Aracruz, o atirador utilizou uma braçadeira com uma suástica. A polícia também encontrou em sua casa um exemplar do livro Minha Luta, autobiografia de Adolf Hitler.

No início deste ano, a antropóloga Adriana Dias revelou que o número de pessoas envolvidas em núcleos neonazistas cresceu 270,6% entre janeiro de 2019 a maio de 2021. Isso equivale a aproximadamente 10 mil pessoas envolvidas em pelo menos 530 grupos, alguns deles em contato direto com os jovens.

Estética bolsonarista

As especialistas relacionam esse fenômeno de adoração à ideologia nazista e a recorrência dos ataques e o aumento no discurso de ódio com a chegada de Jair Bolsonaro (PL) à presidência da República, em 2018.

“Ele é um sujeito que fez apologia à tortura, mesmo que a Constituição proíba, que defende livremente a violência, o preconceito, que se vangloria do seu machismo e da sua homofobia… Esse ódio que estava submerso passa a ser legitimado na figura do presidente”, diz Ângela Soligo.

“O que nós precisamos entender é que a escola não está descolada da sociedade. É exatamente o oposto: tudo que acontece no país vai desaguar na educação de alguma forma e nesse caso não é diferente. O acentuamento desse preconceito e dessa forma de existência também vai permear a relação entre os alunos, os professores e a direção da escola”, complementa.

Luciene Tognetta cita também a política favorável à disseminação de armas na sociedade propagada pelo governo. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados no início deste ano mostram que existem cerca de 4,4 milhões de armas em posse de particulares. Os registros ativos de Caçadores, Atiradores e Colecionadores, conhecidos como CAC's, cresceram 473,6% desde 2018.

“Há uma somatória de fatores: o discurso de ódio e o acesso facilitado às armas. E isso é algo que, mesmo com o fim do governo, não deve acabar. Esse pensamento violento é algo que já estava no Brasil, só que escondido. A partir desse governo, a situação mudou e a escola faz parte desse contexto”, explica.

Outro fator apontado por Ângela Soligo foram as discussões em torno do “Escola Sem Partido”, projeto de lei apoiado por Bolsonaro ao longo da campanha, mas que foi arquivado pelo Congresso Nacional em 2018. Mesmo com ele barrado, os questionamentos em torno da neutralidade dos professores geraram um clima de insegurança entre os docentes.

“Os professores ficaram com medo de abordar temáticas sociais. De uma hora para outra, vereador, deputado e mesmo familiares estavam entrando nas escolas e gravando as aulas fazendo acusações. Isso fez com que muitos assuntos, ainda hoje, sejam marginalizados por receio. Isso é algo nocivo porque impede que os alunos olhem para a realidade livre de preconceitos e respeitando as crenças e culturas alheias”, analisa.

O papel da internet

A presença quase massiva dos jovens na internet e a forma como eles compartilham conteúdos também é outro elemento que, na visão das educadoras, têm contribuído para os ataques vistos recentemente. Levantamento divulgado em agosto deste pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), apontou que 93% das crianças e adolescentes do país entre 9 e 17 anos são usuárias de internet. São 22,3 milhões de pessoas conectadas nessa faixa etária.

“A internet tem coisas boas e coisas ruins. No caso do discurso de ódio, o que nós vemos é que ela, em alguns momentos, funciona como rápida propagadora das ideias. Há uma troca constante de informação entre os grupos de extrema direita nas redes, e o Brasil não está alijado disso”, analisa Milena Gordon Baker, advogada criminalista e autora do livro Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro.

“Antes, esse tipo de discussão acontecia em lugares mais secretos, grupos fechados, ou mesmo na deep web, onde não há regulamentação. Hoje, não. Esse conteúdo está nos aplicativos de mensagem e é compartilhado livremente, como vimos recentemente com o Telegram”, pontua Luciene Tognetta.

Em março deste ano, os pesquisadores de universidades federais da Bahia e de Santa Catarina mostraram um aumento na disseminação de mensagens antissemitas e nazistas em grupos de extrema direita. Foi o projeto “Ecossistema de desinformação e propaganda computacional do Telegram”, coordenado por Leonardo Nascimento, Letícia Cesarino e Paulo Fonseca, que acompanhou 69 grupos e 186 canais de extrema direita.

“Em todos os países há uma relação muito próxima entre um aplicativo de mensagens, geralmente o Telegram, e o YouTube, que é um repositório de informações. E o Google não faz o esforço que deveria para coibir a disseminação de mentiras”, explicou à DW Brasil Letícia Cesarino, em entrevista publicada no início de novembro.

E o futuro?

As especialistas foram unânimes ao dizer que o combate ao discurso de ódio deve ser feito por meio da educação. “A escola precisa dar ao professor subsídio para que ele possa intervir dentro da sala de aula. Isso também é uma crítica às universidades, públicas e privadas, que precisam dar ao professoro conhecimento necessário durante a sua formação. É uma questão estrutural”, afirma Ângela Soligo.

Ela diz ainda que existe uma disputa, com avanços e retrocessos, dentro do ambiente escolar. “A lei 10.639, que obriga o ensino dahistória da África de maneira multidisciplinar, é uma vitória, algo que pode combater esse discurso de ódio. Mas é preciso que as escolas coloquem esse conteúdo de maneira sistemática, não só no mês de novembro ou como algo pontual.”

Segundo Luciene Tognetta, algumas escolas espalhadas pelo Brasil, integrantes do grupo Somos Contra o Bullying estão desenvolvendo técnicas que ajudam os alunos e os professores a identificar casos de discriminação e ofensas dentro do ambiente escolar.

“São programas de convivência, rodas de conversa, uma troca importante entre os próprios alunos e com o auxílio do corpo docente. Nós já percebemos que o combate ao discurso de ódio passa pelo diagnóstico e atuação dos próprios alunos, que estão nos grupos de mensagens, que conversam diariamente dentro e fora da escola. Precisamos estar atentos, porque o que estamos vivendo é grave”.