Políticos e diplomatas falam em dezenas de milhares de menores da Ucrânia que foram levados contra a vontade para a Rússia. Diversas iniciativas tentam trazê-los de volta.Sasha, de 14 anos, ficou com os olhos marejados na quarta-feira da semana passada quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, contava a história dele no Parlamento Europeu, em Estrasburgo.

Quando a Rússia atacou em 2022 Mariupol, sua cidade natal, ele tinha só 11 anos. Foi quando soldados russos o levaram, junto com sua mãe, para um “campo de filtragem” russo. Nesses campos, que a Rússia montou nos territórios que ocupa, os ucranianos passam por uma triagem ideológica antes de serem autorizados a viajar para a Rússia.

No campo, Sasha foi separado de sua mãe e levado para Donetsk ocupada. No caminho, conseguiu ligar para sua avó, Lyudmyla, que mora em território controlado por Kiev. Ela trouxe Sasha de volta. O destino da mãe dele permanece desconhecido.

Sasha e sua avó, Lyudmyla, foram convidados de honra no discurso sobre o Estado da União da presidente da Comissão Europeia. Na fala, von der Leyen enfatizou que a história de Sasha não foi um incidente isolado.

Rússia nega sequestro

Sasha é uma das prováveis ​​dezenas de milhares de crianças sequestradas de sua terra natal pelas autoridades russas desde o início da invasão russa da Ucrânia e levadas para orfanatos ou entregues a famílias adotivas na Rússia.

O destino das crianças ucranianas sequestradas pela Rússia nos territórios ucranianos ocupados tornou-se o foco das negociações de paz no meio deste ano. Kiev exige o retorno de milhares de menores deportados como pré-requisito para um futuro acordo com Moscou para encerrar a guerra.

O Kremlin, no entanto, nega o sequestro. “A Ucrânia está encenando um espetáculo sobre ‘sequestro de crianças’. Não há crianças sequestradas; são crianças resgatadas por nossos soldados”, declarou em junho o negociador-chefe russo, Vladimir Medinsky.

Mas a pressão sobre a Rússia está aumentando. Em agosto, 42 países, o Conselho da Europa e a União Europeia emitiram uma declaração conjunta pedindo à Rússia que devolvesse as crianças, fornecesse informações sobre seu paradeiro e parasse de alterar as identidades das crianças. Senadores americanos e Melania Trump, esposa do presidente americano Donald Trump, também aderiram ao apelo.

Lista mantida em segredo

Foram necessários meses de lobby para que o retorno das crianças chegasse a ser tematizado no patamar mais alto da liderança dos EUA, informou o Wall Street Journal em agosto. Em abril de 2025, 40 importantes líderes religiosos apelaram a Trump e ao secretário de Estado Marco Rubio, exigindo que o retorno das crianças ucranianas fosse priorizado. Em junho, republicanos e democratas apresentaram conjuntamente um projeto de lei no Senado prevendo o fornecimento de assistência técnica a Kiev no retorno das crianças.

O texto menciona “quase 20 mil” sequestrados. Esse número se baseia em dados das autoridades ucranianas, que afirmam que 19.546 crianças foram levadas para a Rússia. Todas elas são conhecidas pelo nome, como enfatiza a iniciativa Bring Kids Back (Traga as Crianças de Volta) do governo ucraniano.

No entanto, é difícil verificar se essa lista é precisa, pois Kiev a mantém em segredo. “Não se trata apenas dos dados pessoais de menores em situação de risco, mas também da segurança deles. Eles podem ser testemunhas em potencial de crimes de guerra e podem, por isso, estar sendo deliberadamente escondidos pela Rússia”, disse à DW Myroslava Kharchenko, advogada da ONG Save Ukraine, que se engaja na defesa do retorno de crianças.

Quais números são confiáveis?

As autoridades russas têm afirmado repetidamente que a lista de 19.546 crianças é “falsificada”. A comissária russa para os direitos das crianças, Maria Lvova-Belova, afirmou em uma entrevista recente que a lista se baseia em números de relatos sobre a perda de contato com crianças desde o início da invasão russa em larga escala da Ucrânia.

Até mesmo alguns membros da iniciativa Bring Kids Back duvidam da lista – ainda que de forma não oficial. “Provavelmente, ela se baseia, em parte, em listas de internatos nos territórios ocupados e, em parte, em pesquisas de fontes abertas e redes sociais. Algumas das crianças podem ter emigrado para a Rússia com os pais, e algumas, desde então, se mudaram para a Europa”, disse à DW um representante de uma organização internacional que prefere permanecer anônimo devido ao seu status neutro.

Como as crianças dos territórios ocupados chegaram à Rússia de diversas maneiras, é difícil compilar uma lista uniforme. As autoridades ucranianas registraram os primeiros casos em 2014. Naquela época, crianças de internatos nas autoproclamadas “Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk”, no Donbass, foram levadas para campos de convalescença russos. E, pouco antes da invasão russa em larga escala, as “Repúblicas Populares” exigiram que Moscou evacuasse todos os orfanatos. Isso envolveu cerca de 500 crianças, que acabaram se espalhando pela Rússia.

Mais tarde, mais menores se juntaram a eles – por exemplo, milhares da cidade devastada de Mariupol. Algumas dessas crianças foram separadas dos pais nos “campos de filtragem” organizados pela Rússia – como Sascha.

Segundo as autoridades ucranianas, no primeiro semestre de 2023, 4.390 órfãos e crianças sem cuidados parentais viviam em lares especiais nos territórios sob controle russo. Aproximadamente o mesmo número estava alojado em orfanatos familiares, afirma Myroslava Kharchenko, da Save Ukraine, enfatizando que essas crianças são legalmente responsabilidade do Estado ucraniano.

Facilitação da cidadania russa

Em maio de 2022, muito antes da anexação formal de quatro regiões da Ucrânia, o presidente russo, Vladimir Putin, simplificou o processo de obtenção da cidadania russa para órfãos dessas regiões, fazendo com que o consentimento dos pais ou responsáveis ​​biológicos da Ucrânia não seja mais necessário. Isso foi justificado em parte por considerações humanitárias, segundo as quais a cidadania russa garante acesso a serviços sociais, assistência médica e educação.

Além disso, Putin ordenou a colocação de crianças ucranianas sem responsáveis ​​em famílias adotivas russas, afirmou Maria Lvova-Belova em uma entrevista.

Baseados em fontes de acesso aberto, jornalistas e pesquisadores acreditam que um número significativamente maior de crianças ucranianas foi entregue a famílias russas. O governo ucraniano e as agências de segurança pública classificam essa política como crime de guerra e genocídio contra o povo ucraniano. No primeiro semestre de 2023, o Tribunal Penal Internacional (TPI) concordou parcialmente com essa avaliação e emitiu um mandado de prisão contra Vladimir Putin e Lvova-Belova por supostas violações das regras de guerra e pela deportação de crianças de Donbass.

Quão realista é o retorno?

Embora a Rússia não reconheça a jurisdição do TPI e negue todas as alegações, o país reagiu ao mandado de prisão contra Putin e Lvova-Belova. Em 2023, Moscou interrompeu a entrega em massa de crianças ucranianas, pelo menos publicamente. Em vez disso, a comissária para a infância tem relatado cada vez mais que está promovendo o retorno de crianças ucranianas à sua terra natal – mas apenas sob a condição de que as crianças sejam entregues pessoalmente a parentes consanguíneos: aos pais, caso recuperem a guarda, aos irmãos, irmãs, tios e tias, ou avós. “Um teste de DNA está sendo cada vez mais frequentemente exigido para isso”, diz Myroslava Kharchenko, da Save Ukraine.

Sua organização conseguiu recentemente devolver mensalmente de 60 a 70 crianças de volta à Ucrânia. Para isso, os parentes precisam primeiro obter a tutela sob a lei ucraniana e depois precisam viajar para a Rússia, onde têm passar por esse processo burocrático novamente.

“A lei russa é bastante rigorosa em relação à adoção de crianças por estrangeiros – e todas as crianças deportadas já receberam a cidadania russa”, explica Kharchenko. De acordo com a iniciativa Bring Kids Back, 1.603 crianças foram levadas de volta à Ucrânia nos últimos três anos, a maioria individualmente.

As estatísticas ucranianas sobre crianças deportadas permanecem incompletas, afirma Kateryna Raschewska, advogada do Centro Regional de Direitos Humanos, outra ONG que trabalha na busca e no retorno de crianças ucranianas. “Vemos apenas números, sem distinção de idade ou gênero. Não sei dizer quantas crianças já são adultas e acabaram em território russo devido a sequestro ou migração forçada”, explicou ela recentemente a jornalistas.

Pesquisadores internacionais têm tido um sucesso relativamente maior na localização de crianças ucranianas. Por exemplo, até março deste ano, o programa do Laboratório de Pesquisa Humanitária da Universidade de Yale conseguiu identificar e localizar 8.400 crianças da Ucrânia na Rússia.

No início deste ano, o governo americano quase encerrou esse programa devido a cortes orçamentários massivos. A retomada do financiamento neste no meio deste ano é um dos principais resultados do lobby ucraniano nos EUA.