02/10/2019 - 9:57
O mistério de como um fungo tropical chegou ao (frio) litoral noroeste da América do Norte e causou mortes entre a população local foi finalmente desvendado, segundo pesquisadores americanos. O estudo a esse respeito, feito por cientistas da Universidade Johns Hopkins e da organização sem fins lucrativos Translational Genomics Research Institute (TGen), foi publicado ontem (1º de outubro) na revista “mBio”.
O surto do fungo Cryptococcus gattii, que envolve pelo menos várias centenas de casos conhecidos, está em andamento desde 1999. Ainda se registram casos em seres humanos e animais selvagens. Os epidemiologistas ficaram intrigados porque os subtipos de fungos isolados da grande maioria dos pacientes infectados se assemelham a subtipos normalmente vistos no Brasil e em áreas próximas da América do Sul.
Os coautores, o microbiologista Arturo Casadevall, da Johns Hopkins, e o epidemiologista David Engelthaler, do TGen, afirmam que, com a abertura do Canal do Panamá, em 1914, o C. gattii começou a viajar do sul para o norte, possivelmente nos tanques de lastro dos navios. Décadas depois, os tsunamis causados pelo Grande Terremoto no Alasca de 1964 trouxeram o fungo para a costa e para a área de floresta costeira.
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Após várias décadas, à medida que evoluía para lidar com seu novo habitat, o C. gattii começou a infectar pessoas. O terremoto de 1964, de 9,2 graus, continua sendo o maior já registrado no hemisfério norte, e os efeitos do tsunami foram sentidos no Havaí e além dele.
Atenção aos tsunamis
“A grande ideia nova aqui é que os tsunamis podem ser um mecanismo significativo pelo qual os patógenos se espalham dos oceanos e rios estuariais para a terra e, eventualmente, para a vida selvagem e os seres humanos”, diz Casadevall. “Se essa hipótese estiver correta, poderemos eventualmente ver surtos semelhantes de C. gattii, ou fungos semelhantes, em áreas inundadas pelo tsunami na Indonésia em 2004 e no tsunami no Japão em 2011.”
Segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, mais de 300 infecções por C. gattii foram relatadas na região noroeste do Pacífico canadense e norte-americano desde o primeiro caso, na Ilha de Vancouver, em 1999. Antes dessa época, as infecções por esse fungo haviam sido confinadas quase inteiramente a Papua Nova Guiné, Austrália e América do Sul.
O fungo normalmente infecta as pessoas por inalação. Pode causar uma doença semelhante à pneumonia e também pode se espalhar para o cérebro, causando uma meningoencefalite potencialmente fatal. Relatos de casos publicados sugerem uma taxa de mortalidade de mais de 10%.
Relógio molecular
Epidemiologistas encontraram evidências de C. gattii no solo e nas árvores das áreas costeiras da Colúmbia Britânica (Canadá) e dos estados de Washington e Oregon (EUA), bem como nas águas costeiras – foram registradas infecções por fungos inclusive em mamíferos marinhos. No entanto, como esse patógeno tropical se estabeleceu em uma área tão fria do norte não era claro. As teorias incluem o aquecimento global e a importação de eucaliptos tropicais.
Cerca de dez anos atrás, o CDC pediu a Engelthaler para investigar. Ele e seus colegas aplicaram uma análise de “relógio molecular” às sequências de DNA de C. gattii isoladas em subtipos e concluiu que esses subtipos haviam chegado do Brasil ou de perto do Brasil entre 60 e 100 anos antes.
Esse prazo teria correspondido a um período logo após a abertura do Canal do Panamá, quando o transporte aumentou significativamente entre os portos do Atlântico e do Pacífico.
Transporte por navio
Engelthaler levantou a hipótese de que o fungo, que ocupava as águas costeiras da América do Sul a partir de rios locais, provavelmente havia sido trazido para a América do Norte através de um meio de transporte comum para espécies invasoras: água de lastro. Os navios naqueles dias rotineiramente pegavam essa água em um porto e simplesmente a descarregavam, sem tratamento, em outro.
Isso deixou a questão de como o C. gattii havia conseguido colonizar grande parte da costa noroeste do Pacífico. O que poderia ter trazido não apenas um, mas vários subtipos de águas costeiras para a costa em massa?
Após um estudo mais aprofundado, Engelthaler deduziu que o Grande Terremoto no Alasca em março de 1964 poderia ter sido o fator principal. O terremoto teve seu epicentro no sudeste do Alasca, mas gerou tsunamis em todo o Pacífico Norte. Esses tsunamis inundaram áreas costeiras da Colúmbia Britânica, de Washington, do Oregon e da Califórnia. As regiões afetadas correspondem amplamente aos locais onde o C. gattii foi encontrado e ocorreram infecções humanas.
Havia várias peças nesse quebra-cabeça. Parecia que um evento singular, como um desastre natural, poderia ter sido a peça que faltava para reunir todo o cenário, observa Engelthaler. A ideia do tsunami parecia se encaixar no “quando, onde e por quê” dessa emergência da doença.
Desenvolvimento de defesas
Mais de 30 anos se passaram antes que o fungo começasse a infectar seres humanos na região, o que era outro problema não resolvido. Em relação a esse aspecto do quebra-cabeça está a pesquisa anterior de Casadevall, que sugeriu, por exemplo, que outra espécie de Cryptococcus infectada por humanos intimamente relacionada ao C. gattii pode desenvolver defesas potentes como resultado de ser atacada na natureza por amebas – defesas que podem torná-lo mais virulento quando infecta pessoas.
“Propomos que o C. gattii pode ter perdido grande parte de sua capacidade de infectar seres humanos quando vivia na água do mar, mas quando chegou à terra, amebas e outros organismos do solo trabalharam nela por três décadas ou mais, até que surgiram novas variantes de C. gattii que eram mais patogênicas para a água. animais e pessoas”, diz Casadevall.
Os pesquisadores agora esperam continuar testando suas hipóteses com análises detalhadas da prevalência do C. gattii, em solos dentro e fora de áreas inundadas por tsunamis do noroeste do Pacífico, e com pesquisas de conjuntos de dados de DNA coletados de outras partes do mundo, para ver se os mesmos subtipos de C. gattii encontrados no Brasil e no litoral noroeste da América do Norte estão mais presentes nas águas do mar em torno dos portos.