25/08/2016 - 20:16
Quando o projeto da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, no Pará (provavelmente distante de onde você mora), foi suspenso no fim de abril pelo impacto que pode causar na vida de 12 mil índios mundurucus (sobre os quais você dificilmente ouviu falar), sua vida também foi afetada de alguma forma. A relação pode não ser muito clara de início. Mas a construção de mais uma hidrelétrica na região amazônica faz parte de um debate maior, que envolve as escolhas da sociedade brasileira sobre geração de energia elétrica e preservação socioambiental. E isso tem reflexos diretos, por exemplo, no seu banho quente, nos eletrodomésticos que usa e, logicamente, no valor da sua conta de luz. Afinal, a eletricidade não nasce no interruptor, embora num mundo de elevadores, geladeiras e dispositivos eletrônicos seja fácil esquecer isso.
A decisão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de suspender o licenciamento ambiental da São Luiz do Tapajós, que seria uma das maiores usinas do país, com 6,1 gigawatts (GW) de capacidade instalada – a de Itaipu, como referência, é de 14 GW –, é uma forte demonstração de que o modelo nacional baseado em grandes hidrelétricas, que produzem energia a preços bem acessíveis, está se tornando controverso. E abre precedente para repensar cerca de 30 projetos planejados para o período 2011-2020, 18 dos quais estão localizados na Amazônia, de acordo com o atual Plano
“nossa matriz, basicamente hidráulica, agregou usinas
termelétricas movidas a combustíveis fósseis”
“A partir da mudança do século, os novos projetos de usinas hidrelétricas ficaram sujeitos a uma nova sensibilidade da sociedade em relação à questão ambiental, e isso representou uma mudança de paradigma no setor elétrico”, analisa Nivalde J. de Castro, professor doutor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel).
PADRÃO EM XEQUE
A questão principal é: para que lado caminhará nossa matriz elétrica? É inquestionável que o setor elétrico brasileiro sempre foi expressivamente limpo, por estar 74,6% baseado em fontes renováveis. Mas a necessidade de adoção de termelétricas (à base de combustíveis fósseis), durante a última década, fez acender um sinal de alerta para o meio ambiente, a produtividade do capital nacional e o bolso do consumidor.
Com essas questões trazidas à luz, a matriz majoritariamente hidráulica, que funcionou até então, está passando por questionamentos, e o Greenpeace está entre seus maiores críticos. No planejamento para 2050, feito pela organização não governamental conservacionista, as hidrelétricas perderiam o trono. Considerando uma geração de eletricidade duas vezes maior que a atual, para acompanhar a demanda, a ONG sugere que se mantenham as hidrelétricas já existentes, mas não se construam novas, de maneira que elas respondam por 35% do total gerado (hoje em dia, são responsáveis por 61,2% da geração; confira quadro).
As fontes solar e eólica, que atualmente ficam com 6,4% do bolo, por sua vez, ganhariam protagonismo, assumindo 40% da matriz; a biomassa (hoje em dia com 9,3%) e a solar concentrada (praticamente inexistente) somariam até 25%, e serviriam para garantir a segurança energética – atual papel das caras e poluentes usinas termelétricas. Esse planejamento, no entanto, bate de frente com boa parte dos especialistas no assunto, que não confiariam a segurança da matriz a fontes consideradas intermitentes.
Outro estudo divulgado pela ONG sugere a combinação de usinas fotovoltaicas, eólicas e de biomassa como substituição à usina de Tapajós, o que traria ainda duas vantagens: a agilidade de construção – dois a três anos, enquanto as hidrelétricas levam, em média, dez anos – e a criação distribuída de empregos pelo país. “Os governos seguem insistindo em construir grandes hidrelétricas, que já estão ultrapassadas. As fontes solar, eólica e biomassa já poderiam ter maior participação se também recebessem incentivos como as hidrelétricas, nuclear e de combustíveis fósseis”, afirma Thiago Almeida, da campanha de Clima e Energia do Greenpeace Brasil.
Ele ressalta ainda que a crise hídrica recente ameaçou o país com uma nova crise energética, que só não foi concretizada porque a retração econômica reduziu a demanda de eletricidade a níveis abaixo do previsto. “O favoritismo a grandes obras se reflete nos problemas de corrupção que o Brasil está vivendo hoje. Quanto maior a obra, maiores as quantias envolvidas, o espaço e o risco para corrupção”, avalia.
CUSTOS INFLADOS
Em tempos de Operação Lava Jato e seus desdobramentos, o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ), passou a estudar por que os megaprojetos energéticos no Brasil têm um custo maior do que o esperado e como se comportam os de menor escala. Os dados levantados indicaram que projetos de refinaria têm sido 210% mais caros do que o previsto. Belo Monte, por sua vez, ficou na faixa de 70% a mais. As usinas nucleares têm sobrepreço de 250% em comparação à média internacional. E as linhas de transmissão também têm altos desvios. Já os custos de projetos eólicos têm ficado dentro de aceitáveis 12% a mais.
“Descobrimos que, em relação a outros tipos de geração, projetos de menor escala e complexidade tecnológica – como os de usinas eólicas e solares –, que têm maior aceitabilidade social e não geram impactos interestaduais, são implementados de forma mais eficiente e sem desvios expressivos de custo”, analisa Alexandre Szklo, engenheiro químico e professor do programa de planejamento energético (área em que desenvolveu seu mestrado e doutorado) na Coppe-UFRJ.
A causa principal do desvio de custos, de acordo com o estudo, está no fato de a decisão dos leilões de energia ser tomada com base no projeto conceitual, e não no projeto executivo. Szklo compara a situação à reforma de uma casa. O proprietário chama três profissionais, mas eles mal olham a residência e fazem orçamentos atraentes para ganhar a competição. “Durante a reforma, surgem problemas que seriam previsíveis, os custos vão aumentando e você vira refém do profissional escolhido”, exemplifica Szklo.
A disputa entre ofertas, como funcionam os leilões brasileiros atualmente, não é capaz de evitar conluios nem desvios. Uma boa saída para o problema, na opinião do professor, seria comparar projetos executivos entre si. “Se incorporamos o sobrecusto à realidade dos projetos, fica visível que os de menor escala de fontes alternativas são mais viáveis”, conclui.
LEILÕES REGIONAIS
Outra crítica da Coppe aos leilões brasileiros é que eles são separados por fonte de energia. “Propomos que sejam adotados leilões regionais, pois permitiriam escolher a melhor alternativa sistêmica para a região”, ressalta Szklo.
Dessa forma, em uma mesma planta de geração seria possível combinar a produção de energia solar com hidrelétrica ou com biomassa da cana-de-açúcar. No caso do Semiárido brasileiro, por exemplo, isso estimularia o desenvolvimento de uma indústria de espelhos e coletores na região, com geração de renda e de emprego, pois são peças de 120 m2 que precisam ser produzidas no seu lugar de uso. “Mostramos esse estudo para o governo brasileiro, mas não conseguimos convencê-lo.”
Enquanto essas soluções não são levadas em conta, outros problemas estão sendo consertados no âmbito dos leilões. Depois que usinas eólicas contratadas em anos anteriores ficaram desconectadas da rede por até um ano, um erro essencial foi reparado. Recentemente, o governo federal modificou a regra para exigir que as eólicas passem a garantir, além do fornecimento, o acesso às linhas de transmissão.
A mudança não bem foi absorvida inicialmente pelo mercado, que não contratou nenhum projeto no leilão de maio, o primeiro realizado depois da alteração. Mas espera-se que a nova regra traga melhorias em breve.
Apesar de todos os aspectos questionáveis comentados anteriormente, o modelo de contratação de energia no país está à frente do mercado internacional. “Conseguimos criar um modelo de leilões bastante eficiente”, afirma Castro, da Gesel. “Nosso modelo de contratação é muito apreciado na Europa. Além disso, o país tem seu planejamento não determinativo feito pelo Estado, que indica necessidades e perspectivas, mas deixa para os agentes econômicos fazerem os leilões.”
Castro enfatiza que o Brasil é um ponto fora da curva: é exemplo de matriz não poluidora e de segurança energética. No cenário das próximas cinco décadas, garante, o país não deverá enfrentar problema de suprimento, pois terá condições de atender o aumento da demanda com recursos nacionais.
“Deveríamos ter orgulho do estágio em que estamos, e não vergonha. Podemos dar aula para os países desenvolvidos”, observa Alexandre Uhlig, diretor do Instituto Acende Brasil, observatório nacional do setor. “O setor elétrico nacional é como uma pessoa que tem peso ideal e não pode descuidar. Mas pedir para um magro fazer regime já é cruel. Não devemos aplicar aqui regimes para países obesos em emissões”, compara.
EXPECTATIVA POSITIVA
O Acende Brasil vê com muito otimismo a mudança no governo federal deflagrada pelo processo de impeachment. “O setor elétrico brasileiro está atravessando uma crise muito profunda, que foi turbinada por medidas do governo anterior e atinge toda a cadeia de valor – geração, transmissão e distribuição”, diz Claudio Sales, presidente do instituto.
Para ele, as nomeações do Ministério de Minas e Energia atendem duas questões essenciais: domínio técnico e articulação política. “O atual ministro, Fernando Coelho Filho, tem reconhecida experiência política, apesar da juventude. E, ao assumir, sua primeira ação foi formar quadros na base da meritocracia, escolhendo Paulo Pedrosa, que tem inquestionável capacidade e conhecimento na área, como secretário-executivo.”
Na opinião de Alexandre Uhlig, falta ao Brasil um zoneamento ambiental estratégico ou avaliação ambiental integrada, que cruze interesses da economia, desenvolvimento, infraestrutura, meio ambiente e sociedade. “Precisávamos manter uma discussão mais serena, e não apaixonada, dos dois lados, elétrico e ambiental. Mas o que vemos hoje é que quem quer desenvolver quer desenvolver tudo, e quem defende a preservação quer preservar tudo.”
A demanda continuará crescendo e, quando não se constrói uma hidrelétrica em uma área importante para a biodiversidade, é preciso descobrir alternativas, como encontrar outro lugar que não seja crítico ou outra fonte geradora. Afinal, o Brasil precisa manter a sua luz.