08/07/2015 - 17:26
Em vez da clássica toalha xadrez e da cesta de vime, eles levam cartazes e indignação a tiracolo. Em vez de sentir a grama, sentam-se no asfalto das ruas que limitam o Parque Augusta, na região central de São Paulo. Desde 29 de dezembro de 2013, os portões do local foram fechados pelas empreiteiras Cyrela e Setin, interrompendo 40 anos de uso público e pondo à prova a lei que criou o parque, sancionada pelo prefeito Fernando Haddad uma semana antes disso.
Manifestantes debatem formas de retomada do Parque Augusta, no centro de São Paulo, cuja área foi comprada por duas construtoras
Seria só mais uma história de área verde urbana tomada pela especulação imobiliária se não se tratasse do último pedacinho de Mata Atlântica nativa no centro da maior cidade da América do Sul. Esse tesouro só resistiu até agora porque, nos anos 1960, passou a estar protegido em cartório. A matrícula da propriedade possui duas cláusulas determinantes: uma define a preservação das espécies vegetais do terreno de 24.750 m² – que hoje vale cerca de R$ 70 milhões – e a outra determina o livre trânsito de pessoas pelo meio do quarteirão e da vegetação, entre as ruas Marquês de Paranaguá e Caio Prado.
“Eu costumo dizer que as freiras do Colégio Des Oiseaux [tradicional colégio feminino francês das Cônegas de Santo Agostinho, ex-donas do terreno] foram as precursoras da sustentabilidade em São Paulo”, diz Henny Freitas, articuladora da Rede Novos Parques SP, que, apesar da sigla que leva no nome, está atenta a áreas verdes de todo o Brasil – em contato com 50 movimentos sociais atuantes no estado de São Paulo, oito grupos nacionais e dois internacionais. Como o Parque Augusta ocupa um local estratégico, muito valorizado pelo mercado imobiliário, o caso reverberou uma tensão maior a respeito de áreas verdes na capital paulista e em muitas outras cidades do país.
Um dos portões de acesso ao parque, fechado desde 2013
Em geral, espera-se que os parques nasçam da iniciativa do poder público, que montaria projetos, consultaria a população e adotaria as mudanças sugeridas. Mas, muitas vezes, a caminhada segue o sentido contrário – como se uma planta nascesse da folha em vez da raiz. A população se articula e faz pressão social, junta-se a vereadores para fazer tramitar lei, que depende da sanção do prefeito. E vão-se anos nesse processo, que pode não sair do papel, porque sempre é preciso verba para desapropriar terrenos e criar a infraestrutura.
Apoio fundamental
“Mesmo que haja recursos e ideias maravilhosas de ONGs internacionais, se moradores, governantes e legisladores não derem abertura, nenhum projeto vai ter sucesso. Sem apoio político e da comunidade não dá para fazer nada”, garante Luisa Villegas, diretora de programas para a América do Sul da Fundação Pan-Americana de Desenvolvimento (PADF).
Acostumada a lidar com diversos países, Luisa aponta que o Brasil tem uma vantagem quando o tema é preservação ambiental: a atenção internacional, já que sempre somos associados a riquezas naturais, Amazônia e, até, desmatamento. A PADF anunciou recentemente ter recebido US$ 250 mil da Caterpillar Foundation para investir em Campo Largo (PR), perto de Curitiba. Com isso, o Projeto Condomínio da Biodiversidade (ConBio) foi estendido até 2017, dando continuidade a outros US$ 500 mil investidos pela mesma fundação entre 2012 e 2014.
Grupo de defesa do Parque dos Búfalos, em São Paulo
Nos dois primeiros anos, 101 proprietários foram apresentados ao programa e 78 aceitaram adotar uma nova atitude em relação ao meio ambiente. Na segunda fase, outros 100 donos de terras serão consultados. “Também queremos transformar em reservas 35 áreas que já estão no programa. De parte da prefeitura e da população, tivemos muita receptividade desde o começo, agora vamos trabalhar com os legisladores” , afirma Luiza.
A meta é replicar o modelo (e o sucesso) de Curitiba, que facilita e dá incentivo para os proprietários transformarem suas áreas em Reservas Particulares do Patrimônio Natural Municipal (RPPNM). Oito das 11 RPPNMs criadas na cidade tiveram apoio da ConBio, desde 2008. “Quando as áreas onde há nascentes são desmatadas, a água acaba. É o que ocorre em São Paulo, embora alguns não queiram fazer essa conexão. Tentamos evitar que Campo Largo chegue a isso”, afirma Luiza.
Verde versus cinza
O Parque dos Búfalos, uma das últimas áreas verdes às margens da Represa Billings, em São Paulo, é um caso emblemático dessa questão. “A área só não foi tomada por assentamentos ou grilagem porque as pessoas entenderam que esse é o último espaço de convivência daquela região”, explica Henny. Em 2014, porém, o decreto de utilidade pública que previa o parque na propriedade privada de 830 mil m2 foi revogado pelo prefeito Fernando Haddad, para que se erga ali um conjunto habitacional do programa federal Minha Casa, Minha Vida.
O Parque Barigui, uma das muitas áreas verdes de Curitiba
“Levantamentos do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) mostram que só com os imóveis inabitados da capital paulista já daria para cobrir o déficit habitacional. Não estamos erguendo edifícios porque é necessário, mas para alimentar a lógica do mercado. Em parte, isso é o que banca a cidade”, resume Augusto Aneas, arquiteto e urbanista, ativista do Organismo Parque Augusta (OPA).
Em São Paulo, assim como em outras cidades, a construção de edifícios é gratuita até certo limite definido para cada zona, segundo o Plano Diretor. Mas é possível ultrapassar esse limite se for paga a “outorga onerosa”. Essa taxa engorda o Fundo Municipal de Urbanização (Fundurb), que teria o papel de implantar melhorias na cidade – ou seria melhor dizer que seu papel seria tentar compensar os estragos?
Cinza versus saúde
Manter áreas verdes tem seu custo, de fato – principalmente o chamado custo de oportunidade do mundo financeiro e imobiliário. Mas algumas contas rápidas mostram que o investimento se paga. A começar pelos gastos públicos e privados de internações por doenças cardiovasculares, pulmonares e câncer de pulmão atribuíveis à poluição, que em 2011 totalizaram R$ 246 milhões somente no estado de São Paulo. A isso se acrescentam quase 17,5 mil mortes prematuras por ano na região, entre 2006 e 2011, gerando perdas incalculáveis.
O High Line, em Nova York, proposto inicialmente por moradores dos arredores
Uma única árvore adulta é capaz de sequestrar, em média, 22 quilos de gás carbônico (CO2) por ano. Ao concentrarem muita vegetação, inclusive de grande porte, os parques absorvem consideráveis quantidades de poluentes atmosféricos, quebram as zonas de calor, reduzem a poluição sonora e atraem agentes polinizadores que vão replicar as espécies nativas. Além disso, as árvores são grandes produtoras de chuva: elas puxam a umidade do solo e a devolvem ao ar.
Um ipê centenário, por exemplo, pode liberar até 500 litros de água por ano, suficientes para encher uma piscina pequena. Os espaços verdes têm ainda um impacto positivo na saúde mental dos moradores de cidades, segundo um estudo da Universidade de Exeter (Reino Unido). Foram avaliadas respostas anuais, entre 1991 e 2008, de 5 mil famílias e 10 mil adultos que participaram da pesquisa British Household Panel.
Independentemente de nível de renda, estado civil, condição física, emprego, tipo de moradia e taxa de criminalidade na vizinhança, quem mora em cidades se sente mais feliz – com mais satisfação e menos estresse – quando vive perto de espaços verdes. Sem eles, nenhuma conta que inclua qualidade de vida urbana fecha. A taxa de natalidade dos parques precisa crescer com raízes fortes para que o cotidiano nas cidades se torne, no mínimo, mais agradável.