30/10/2025 - 17:38
Palco de operação que deixou 121 mortos, favelas começaram há 100 anos com loteamento organizado por polonês, próximo a quilombo. Com mais de 50 mil habitantes, complexo hoje é maior que 90% dos municípios brasileiros.Houve um tempo, no início do século 20, em que a Serra da Misericórdia, na Zona Norte do Rio de Janeiro, era uma mata de formações rochosas e pouco habitada, cortada por alguns pomares, nascentes e casebres, inclusive de pau-a-pique. Cem anos mais tarde, seria o cenário da operação policial mais letal da história recente do Brasil, ocorrida na terça-feira (27/10) nas favelas do Complexo do Alemão e da Penha.
No dia seguinte, o governo estadual, comandado por Claudio Castro (PL), confirmou pelo menos 121 mortes, cifra que supera matanças como o massacre do Carandiru de 1992.
A longa história da área rural transformada no complexo de 15 comunidades, onde residem hoje 54 mil pessoas, começa com o polonês Leonard Kacsmarkiewcz. Radicado no Brasil, ele adquiriu cerca de sete hectares nos anos 1910, segundo registros históricos citados pelas pesquisadoras Patrícia Brandão Couto e Rute Imanishi Rodrigues em relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Conta-se que o imigrante, que teria chegado ao Brasil na esteira da Primeira Guerra Mundial, ganhou o apelido de “o Alemão”, por conta da aparência que evocava ares europeus. O seu pedaço de terra se tornaria o Morro do Alemão, que separa o complexo homônimo do Complexo da Penha — esta, com 13 comunidades. Com mais de 50 mil habitantes, o Complexo do Alemão supera a população de 90% dos municípios brasileiros.
“Aluguel de chão”
Nas três décadas seguintes às aquisições de Kacsmarkiewcz, algumas fazendas seriam registradas na região. Assim como em outras partes do Rio de Janeiro onde se formariam favelas, proprietários recorriam ao “aluguel de chão” — ou seja, o arrendamento de terras sem registro em cartório para pequenos produtores rurais.
Mas o polonês popularmente transformado em “alemão” apostou numa estratégia diferente. O marceneiro de profissão criou um precário loteamento urbano, sem infraestrutura, e passou a alugar os terrenos para moradias improvisadas.
“Os primeiros focos de ocupação do atual Complexo do Alemão foram incentivados pelo setor privado, posto que os proprietários locais se beneficiavam”, escrevem as autoras do relatório do Ipea.
Kacsmarkiewcz se tornaria figura conhecida entre os locais por observar com uma luneta a movimentação na sua propriedade, conta o jornalista e historiador Thiago Gomide. “O chamado ‘muro do Bope’ (a estratégia da polícia para cercar os alvos da megaoperação desta semana) aconteceu exatamente onde ficavam as terras dele.”
A partir da virada para os anos 1940, o Morro do Alemão e seus entornos receberiam milhares de pessoas, a contragosto de autoridades locais. Os novos moradores chegavam, em grande parte, para se juntar a parentes ou atraídos pelas ofertas de trabalho no polo industrial que emergia, facilitado pela inauguração da Avenida Brasil em 1946.
As primeiras ocupações irregulares do território aconteceriam nos anos 1950, quando a família Kacsmarkiewcz passou a vender os lotes mais altos.
Boom depois dos anos 1980
Não seria até os anos 1970 e 1980, entretanto, que o fenômeno ganharia magnitude. Depois de um boom populacional, o censo de 2000 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou 65 mil moradores.
“Logo a família começou a perder tudo por causa das invasões, e não tivemos mais controle de nada”, relata o vereador Vitor Hugo (MDB), que é bisneto do “alemão” e se apresenta como cria de Olaria, um dos bairros do entorno.
Quase nenhum Kacsmarkiewcz ficou na região por causa da rampante violência do último século. Mas as terras continuam no nome da família, segundo o bisneto do pioneiro.
O gabinete do vereador fica perto do Morro do Alemão, onde recebe demandas da população sobre riscos associado às moradias em encostas, buracos nas ruas e problemas de iluminação.
“Foram muitos anos de abandono”, diz. Neste ano, ele virou alvo de falatório na internet ao propor um dia para homenagear as artesãs que fabricam os “bebês reborn”. A Prefeitura vetou.
O nome Complexo do Alemão seria oficialmente adotado em 1993. Naquele ano, o Exército e a Polícia Federal chegaram a montar uma operação para tentar retomar o território do CV, nascido em 1979 no antigo presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande.
Mas o plano foi abortado na última hora a mando de Leonel Brizola, então no seu segundo mandato como governador estadual, conforme reportou o Correio Braziliense. Nos dois anos seguintes, pelo menos duas outras operações deixariam 27 mortos no Alemão.
Penha, refúgio de escravizados
Já o Complexo da Penha tem no centro da sua história um quilombo num ponto de difícil acesso da Serra da Misericórdia. Era o refúgio de pessoas escravizadas no século 19, sob a proteção do abolicionista Padre Ricardo, da Igreja da Penha.
Lá nasceria o Quilombo da Penha e, nas primeiras décadas do século 20, se consolidaria como um dos berços da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro, com lendas e tradições próprias.
“Havia espaços onde o samba era apresentado nas ruas, antes do rádio, por figuras como Noel Rosa e Pixinguinha. Era também um lugar marcado pelo encontro de intelectuais e pelo cruzamento de festas. Mais tarde, a Vila Cruzeiro (uma das comunidades da Penha) seria marcada pelo desenvolvimento do funk,” afirma Gomide. “Tudo isso marcou o Rio de Janeiro e o Brasil. Ali existe um universo de saberes.”
Foi na Vila Cruzeiro que, em 2002, o jornalista Tim Lopes, da TV Globo, foi capturado e, depois, assassinado durante uma investigação sobre o abuso de menores num baile funk.
Falência do Estado
A geografia do Alemão e da Penha, cercados de área verde e estradas de terra, é um dos fatores que torna a localização estratégica para o crime organizado. Os complexos tornaram-se uma espécie de bastião do CV, inclusive com estruturas sofisticadas.
Em 2010, quando três mil policiais e membros das Forças Armadas ocuparam os dois complexos, rodou o Brasil a imagem de supostos membros do CV fugindo, pelos corredores na mata, da Vila Cruzeiro ao Alemão. Mais tarde, a operação seria considerada um sucesso por garantir a entrada das forças de segurança no território, com o hasteamento de uma bandeira do Brasil.
Mas ao longo dos anos 2000 nem a ocupação policial, nem a participação do Exército, tampouco a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) se provariam eficientes em manter paz duradoura nas comunidades.
“Há uma relação de pouquíssimo contato entre Estado e favelas”, prossegue Gomide. “O resultado disso costuma ser uma guerra que vai se repetir em duas semanas ou dois anos. É uma guerra sem fim,” diz.
Em 2015 e 2019, as favelas do Alemão foram o cenário das mortes do menino Eduardo Ferreira Calei, de 10 anos, e da menina Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, respectivamente. Ambos foram atingidos por tiros de fuzil durante confrontos entre policiais militares e o crime organizado.
A Vila Cruzeiro seria, em 2022, alvo de mais uma operação policial que ganhou manchetes país adentro ao deixar 23 mortos. Até então, era a segunda mais letal do estado do Rio de Janeiro, sendo apenas superada pelo massacre do Jacarezinho, quando 28 pessoas foram mortas.
