Vinte anos após furacão devastar Nova Orleans, sobreviventes que eram crianças à época do desastre ainda enfrentam traumas provocados pela perda de vínculos comunitários.Nas primeiras horas do dia 29 de agosto de 2005, Arnold Burks acordou com o som de gritos enquanto ventos de 200 quilômetros por hora varriam seu bairro.

Quando o furacão Katrina atingiu a região, o garoto de 13 anos era uma das cerca de 100 mil pessoas que ainda estavam em Nova Orleans, uma cidade na Louisiana, perto da costa do Golfo dos Estados Unidos. Apesar dos alertas de evacuação, muitos não tinham condições financeiras para deixar a cidade ou não tinham carro. O pai e o irmão mais velho de Burks decidiram que ficariam em casa.

Ao amanhecer daquele dia, parecia que a cidade havia sido poupada. Burks até se lembra de ter se divertido brincando na água da enchente.

Mas, com o passar do dia, a água subiu ainda mais.

Nova Orleans fica em uma região pantanosa costeira e grande parte da cidade está a 1,8 metro abaixo do nível do mar. Vulnerável à água, o município é cercado por diques, construídos para resistir a uma tempestade de nível 3.

Mas o sistema de proteção contra inundações não conseguiu suportar a pressão causada pela forte maré de tempestade desencadeada pelo Katrina. O nível do mar do Golfo subiu repentinamente, canalizando a água para o Lago Portchartrain e rompendo os diques em dezenas de pontos. A água engolfou 80% da cidade e deixou 1,2 mil mortos.

Burks e sua família foram forçados a fugir. A água já atingia mais de 2 metros de profundidade e, como Burks não sabia nadar, se agarrou a um pneu para chegar ao topo de um estacionamento próximo. Ele passou pela casa de um vizinho, da qual só se via o telhado.

“E eu não sei se eles estavam lá dentro ou não… até hoje, eu ainda não sei”, disse Burks.

Consequências prolongadas

O furacão Katrina atravessou Nova Orleans há 20 anos, mas a tempestade deixou consequências prolongadas na vida de Burks e de milhares de outras crianças, agora adultas, que passaram por ela.

A tempestade deixou Nova Orleans submersa por semanas, período em que a infraestrutura urbana entrou em colapso. Muitos dos bairros pobres e predominantemente negros foram afetados de forma desproporcional.

Os moradores passaram por condições cada vez mais difíceis enquanto aguardavam o resgate. Milhares se abrigaram no estádio Superdome, a falta de suprimentos e organização para acolher o elevado número de pessoas no local se tornou emblemática à época, levando a diversos relatos de superlotação e insegurança.

De acordo com algumas estimativas, cerca de 5 mil crianças foram dadas como desaparecidas imediatamente após a tempestade. Muitas esperaram semanas ou até meses antes de se reunirem com suas famílias. Mais de 370 mil crianças em idade escolar foram imediatamente desalojadas e mais de um terço permaneceu deslocada por anos. Um número incontável perdeu seus pais e suas casas.

Quando se trata de lidar com desastres, crianças e adolescentes têm mecanismos de enfrentamento diferentes dos adultos, disse Eric Griggs, vice-presidente da Access Health Louisiana, uma das maiores redes de centros de saúde do estado.

“Imagine alguém pegando seu cérebro e tudo o que você sabe, sacudindo sua cabeça, sacudindo sua memória, sacudindo tudo e, em seguida, arrancando tudo. E colocando de volta depois de destruído”, disse Griggs.

Um estudo realizado por pesquisadores de Harvard sobre o impacto emocional da tempestade na juventude de Nova Orleans descobriu que um em cada seis jovens apresentava problemas persistentes de saúde mental após o evento. Os pais muitas vezes enfrentavam acesso limitado a apoio profissional para seus filhos.

Quebrando o silêncio

Muitas dessas crianças não falaram sobre suas experiências durante anos, disse E’jaaz Mason, que também tinha 13 anos quando o Katrina atingiu a região.

Ele acordou na madrugada de 29 de agosto e encontrou sua mãe grudada nas notícias da TV. No dia anterior, ela o levara de carro para o norte, a fim de escapar da tempestade. A casa deles foi uma das 150 mil residências inundadas.

Para desvendar o impacto que o Katrina teve sobre uma geração de crianças como ele, Mason, agora cineasta e professor da Universidade de Stanford, fez parte da equipe de filmagem que entrevistou dezenas de pessoas, incluindo Burks, para o documentário de 2022 “Katrina Babies” (“Bebês do Katrina”, em tradução livre).

Os entrevistados no filme narram o trauma deixado pelas vidas perdidas na tempestade e pelo deslocamento forçado, que rompeu laços comunitários que remontavam a gerações. Metade da comunidade negra da cidade nunca mais voltou.

O desastre teve um impacto profundo em Mason. Mas ele não percebeu isso até começar a se envolver em problemas quando estava na faculdade, o que acabou levando-o a passar uma noite na prisão.

“Se o Katrina não tivesse acontecido, acho que eu nunca teria chegado a esse ponto”, disse ele.

Mason foi uma das muitas crianças que foram evacuadas antes da tempestade. Três meses depois, ele voltou à sua casa e descobriu que ela já não parecia um lar. Os seus pertences estavam espalhados pelo exterior. No interior, cheirava a mofo e tudo ainda estava úmido. A tempestade tinha destruído todas as fotos que ele tinha do seu falecido pai.

“Perdi toda a emoção naquele momento… simplesmente não parecia real”, disse Mason.

A cura do Katrina através da narrativa

Mason disse que trabalhar no documentário foi uma experiência curativa, além de ser uma parte importante para fazer Nova Orleans falar sobre preparação para furacões, transtorno de estresse pós-traumático e manter as comunidades conectadas.

Ele se lembra da atmosfera intensa em uma das primeiras exibições na cidade. “Havia lágrimas e pessoas chorando durante o filme”, disse ele.

Em determinado momento, o diretor perguntou a seus pais como eles imaginavam que as crianças lidavam com o desastre, e eles responderam que achavam que elas estavam bem e felizes.

“Houve um som audível como ‘mmhh’ que ecoou por todo o teatro”, lembrou Mason. “Minha mãe, que estava sentada atrás de mim, inclinou-se para a frente e me abraçou. E disse: ‘Sinto muito. Eu não tinha ideia de que vocês estavam lidando com esse tipo de coisa'”.

Futuras gerações estão vulneráveis às mudanças climáticas?

Duas décadas após o Katrina, Mason reflete que a cidade deveria ter se preparado melhor para a catástrofe.

A Sociedade Americana de Engenheiros Civis concluiu em seu relatório de 2007 que o sistema de diques de Nova Orleans falhou em todos os aspectos – não era alto o suficiente, forte o suficiente ou capaz de compensar o fato de que a cidade está afundando.

Nos anos seguintes, o sistema de proteção contra enchentes foi renovado, e a cidade resistiu a outros furacões, mas ainda está vulnerável à água.

O litoral da Louisiana está sofrendo uma rápida erosão, o que o torna mais suscetível a tempestades. O estado está perdendo, em média, uma área de pântanos do tamanho de um campo de futebol a cada hora, de acordo com a organização ambiental sem fins lucrativos The Nature Conservancy.

Isso se deve em grande parte às mudanças climáticas – especificamente ao aquecimento das águas e ao aumento do nível do mar, os mesmos fatores que já estão tornando mais prováveis chuvas intensas e inundações causadas por furacões.

Especialistas alertaram neste verão que os EUA estão cada vez mais vulneráveis a furacões, devido a cortes nas agências federais.

O governo Trump reduziu o financiamento e o número de funcionários da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (Noaa), vital para a previsão do tempo, e planeja dissolver a Agência Federal de Gerenciamento de Emergências, que fornece resposta a desastres e foi fortalecida após o furacão Katrina.

Mason rejeita a narrativa de que o povo de Nova Orleans se mostrou “resiliente” à tragédia. Para ele, este retrato tira a pressão dos governantes para agir.

“Isso tira a responsabilidade deles e diz: ‘Sabe de uma coisa, não importa se nós encontrarmos soluções positivas para as mudanças climáticas, porque as pessoas que lidam com isso vão ficar bem, vão se recuperar'”, disse Mason.