À medida que a guerra civil parece chegar ao fim após 14 anos, especialistas em patrimônio histórico trabalham para proteger o que sobrou das riquezas culturais da Síria e avaliar como reconstruí-las.Imagens de templos e torres que têm mais de 2.000 anos em ruínas, na cidade síria de Palmira, chocaram o mundo em 2015. As construções foram destruídas pelo grupo Estado Islâmico, que ocupava parte da Síria. Foi um dos vários locais do Patrimônio Mundial da Unesco seriamente danificados durante o conflito.

Outro exemplo é a ancestral cidade de Aleppo e sua fortaleza, que contém um dos castelos mais antigos do mundo.

Com a queda do regime de Bashar Al-Assad em dezembro, o que encerrou mais de 50 anos de ditadura da família Assad, há esperança de que o patrimônio cultural da nação possa ser avaliado, protegido e restaurado.

A organização World Heritage Watch, que tem sede na Alemanha e trabalha na proteção do patrimônio histórico e cultural em todo o mundo, pediu ao governo de transição liderado pelo grupo rebelde Hayat Tahrir al-Sham (HTS) que garanta que o “patrimônio cultural de todos os grupos religiosos e étnicos de todos os períodos da longa história da Síria seja protegido e preservado”.

Mas como isso será possível em um momento de muitas incertezas e grande agitação política?

Contabilização de antiguidades perdidas e danificadas

Na Síria, os arqueólogos, junto com especialistas no exterior, têm se esforçado para compreender a extensão dos danos ao patrimônio cultural após tantos anos de conflito armado.

No entanto, iniciativas como o Syrian Heritage Archive Project (Projeto de Arquivo do Patrimônio da Síria, em tradução livre), com sede em Berlim, coletaram e digitalizaram centenas de milhares de fotografias, filmes e relatórios que documentam os tesouros culturais e naturais da Síria antes e depois da guerra.

Fundado também por refugiados sírios que deixaram sua terra natal, o objetivo do projeto é registrar o que foi destruído para que tudo possa ser reconstruído quando houver paz. Em meio ao caos, porém, há muito mistério em relação ao estado dos abundantes patrimônios culturais da Síria.

O saque generalizado de antiguidades dos museus sírios, por exemplo, não foi “documentado de forma detalhada”, de acordo com Sherine Al Shallah, doutoranda sírio-libanesa da Universidade de New South Wales, na Austrália.

Ela acrescenta que o “patrimônio cultural intangível” na Síria sofreu grandes danos, mas é difícil de quantificar. Habilidades artesanais, como a alvenaria em pedra, estão sendo perdidas devido ao deslocamento generalizado no país devastado pela guerra.

Segundo Nour Munawar, pesquisador de patrimônio cultural e especialista em Síria da Universidade de Amsterdã e da Unesco, tecnologias como imagens de satélite e sensoriamento remoto têm permitido que estudiosos sobre o tema avaliem parte do “tipo e extensão dos danos”.

A isso se compreende “saques, escavações ilícitas e tráfico” de objetos culturais, afirmou à DW.

Mas a dimensão do conflito tem limitado qualquer cálculo completo das perdas do patrimônio cultural sírio, diz Lucas Lixinski, professor de direito público e global da Universidade de New South Wales.

“As informações são sempre irregulares e muitas vezes dependem de pessoas que arriscam suas vidas para ter acesso aos locais”, afirma.

Além disso, escavações ilegais de antiguidades, onde os locais foram abertos “sem nenhuma documentação”, tiveram objetos vendidos em mercados clandestinos para financiar parcialmente a guerra, explica Lixinski.

“O país parece estar no caminho de uma maior estabilidade”, complementa Lixinski, mas qualquer esforço para rastrear e recuperar artefatos saqueados “ainda pode levar alguns anos”.

Trabalhando com a sociedade civil

Se o HTS e o novo governo sírio pós-Assad conseguirem proteger os locais que contêm patrimônio cultural, será vital que a própria sociedade civil síria decida sobre o processo de restauração de acordo com sua identidade singular, acredita Sherine Al Shallah.

“O patrimônio cultural é a contribuição de determinados povos para o mundo, e esses povos são os mais indicados para cuidar dele e têm o direito de acessá-lo, desfrutá-lo e transmiti-lo às gerações futuras”, diz.

Na Síria, essa identidade foi formada por diversas civilizações, desde a arquitetura greco-romana de Palmyra até o mais antigo local de culto cristão identificado no mundo, em Dura-Europos, passando por cidadelas e mesquitas exclusivas do século 13 e os caravançarais do século 18 de Aleppo e Damasco.

“Cabe ao povo sírio decidir quem ele quer ser. Isso dará às autoridades sírias uma noção maior de qual patrimônio manter, qual patrimônio restaurar e de qual patrimônio se desfazer”, afirma Lixinski.

Organizações da sociedade civil síria no setor de patrimônio, no entanto, são “quase inexistentes”, observa Munawar. Por enquanto, ONGs estrangeiras e especialistas em patrimônio cultural como a Unesco terão de emprestar instrumentos e recursos financeiros para garantir que mais documentação, preservação e reconstrução possam ser colocados em prática na era pós-Assad.

Esse patrimônio cultural não deve se restringir ao “patrimônio material estético”, diz Al Shallah, mas sim serem desenvolvidos como locais de patrimônio cultural, a exemplo de Auschwitz Birkenau, que é um “registro de genocídio”, observa.

“A Prisão de Saydnaya, por exemplo, deve ser protegida”, afirma ela sobre a cadeia conhecida por suas celas de tortura que foram apelidadas de “matadouro humano”.

Sua preservação serviria “como um registro das experiências de prisioneiros políticos da Síria, do Líbano e de outros lugares sob um regime brutal que restringiu os direitos fundamentais à liberdade de expressão e associação, e liberou a tortura e o tratamento desumano”, conclui.