Para especialistas, sobretaxa de 50% a importações brasileiras é pior momento da relação bilateral. EUA já tentaram interferir no Brasil no passado.A imposição de tarifas de 50% sobre as importações brasileiras nos Estados Unidos deflagrou uma escalada inédita de tensões entre os dois países.

“Esse é o pior momento da relação bilateral com o Brasil. Trump tem uma visão imperial da política externa, não à toa menciona o presidente McKinley, associado ao imperialismo”, afirma o cientista político Carlos Gustavo Poggio.

Ele explica que o conceito de imperialismo, ou interferência na política interna de um outro país, pode ser atribuído à atual política externa americana por causa da tentativa do governo Trump de influenciar as decisões do Judiciário brasileiro por meio da pressão comercial.

Poggio exemplifica esses movimentos com ações como a influência sobre uma anistia ao ex-presidente Jair Bolsonaro, réu no julgamento da trama do golpe de Estado. O plano foi elaborado após as eleições de 2022 para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O julgamento de Bolsonaro deve ser iniciado no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2 de setembro. Se for condenado pelos diversos crimes pelos quais é acusado, o ex-presidente pode pegar até 40 anos de prisão.

Esta semana, a Polícia Federal indiciou o ex-presidente e seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), por coação de autoridades para impedir o avanço do julgamento da trama golpista e por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito.

Outro exemplo de ingerência americana no Brasil citado por Poggio é o afrouxamento da regulação das chamadas “big techs”, gigantes da tecnologia mundial que, no Brasil, podem ser responsabilizadas por publicações ilegais de usuários nas redes sociais. O julgamento para endurecer a regulamentação foi encerrado em junho pelo STF.

A internacionalista da Universidade Federal de Santa Catarina (USC) Camila Vidal concorda que essa é uma ingerência estadunidense sobre a região. “Faz parte da política externa dos EUA intervir na América Latina, de maneira mais ou menos direta”.

Histórico de interferência dos EUA no Brasil

Embora a medida represente uma tensão incomum em 200 anos de relações bilaterais, outros episódios de ingerência ocorreram ao longo da história dessa diplomacia. Um deles foi a Doutrina Monroe, em 1823. A medida pretendia ampliar a influência econômica dos EUA nas ex-colônias europeias na América, e só teve efeitos na América Latina no final do século 19.

O professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Fidel Flores lembra que, além de intervenções militares na América Central, com imposição de governos e ocupação de territórios, os EUA também exerceram sua hegemonia por meio de acordos de cooperação. “Por isso, o governo brasileiro na época era, até certo ponto, convergente com a investida dos EUA, achavam conveniente essa inserção e seriam colaboradores da Doutrina Monroe”.

Já na Operação Brother Sam, “houve o envio de navios de guerra para São Paulo que estavam preparados para intervir no golpe [militar de 1964]. Não foi usado, mas serviu para marcar posição”, lembra Camila. Por isso, segundo ela, essa convergência entre EUA e Brasil sob a justificativa de combate ao comunismo.

Mais uma situação ocorreu em 1977, no governo do general Ernesto Geisel. Na ocasião, ele recebeu o secretário de Estado americano, Cyrus Vance, que veio ao país no intuito de dissuadi-lo de fechar um acordo para a produção de energia nuclear com a Alemanha.

Apesar da pressão, o Brasil manteve o contrato. Na saída da reunião, Vance deixou para trás uma pasta com detalhes de como persuadir os brasileiros conforme o interesse de Washington.

Relações exteriores com “punho de ferro”

A guinada nas tarifas representou uma nova forma com que os EUA buscam exercer sua diplomacia no Brasil, a partir do uso de ferramentas econômicas para fins políticos, segundo Camila Vidal. “Desde o fim da Guerra Fria que a política externa dos EUA na América Latina é de luvas de veludo envoltas em punho de ferro. O que eu vejo no Trump é que ele retirou essa luva de veludo e ele está expondo o punho de ferro”, descreve.

Para Carlos Gustavo Poggio, até então o governo dos EUA não adotava políticas tão agressivas justamente para evitar inflamar a militância de esquerda. “Antes da ditadura, o governo americano considerava o presidente João Goulart um problema, mas isso era feito de forma estrategicamente velada. Sabiam que se fosse de forma aberta iam estimular o nacionalismo brasileiro e unir a esquerda, o que seria ruim para os objetivos dos EUA, como estamos vendo agora”, compara.

Com a sobretaxacão ao Brasil, o presidente brasileiro Lula respondeu que a autonomia do país é inegociável e que iria proteger a soberania do país. Desde então, a tendência de queda na popularidade do petista tem se revertido.

No levantamento de 20 de agosto da Quaest, o governo Lula teve a melhor avaliação desde janeiro deste ano: a desaprovação caiu dois pontos percentuais de julho (53%) para agosto (51%). A aprovação subiu três pontos, de 43% em julho para 46% em agosto. Entre os motivos, foram citados a reação ao tarifaço e um declínio na inflação dos alimentos, segundo a percepção dos entrevistados.

Relevância da China permite resposta forte do Brasil

Os especialistas avaliam que a resposta do governo brasileiro às tarifas só é possível porque agora o xadrez global é diferente daquele de 200 anos atrás. A China se tornou um parceiro comercial mais relevante na região e o principal destino das exportações brasileiras (28% do valor exportado). Lula chegou a negociar com o presidente chinês, Xi Jinping, alternativas de escoamento dos produtos que iriam para os EUA.

“O Donald Trump está querendo voltar à noção de imperialismo do século XIX, em um novo modelo de hegemonia, baseado puramente na força bruta. É uma nova velha ideia de área de influência”, pondera Poggio.

Camila Vidal ressalta que essa hegemonia dos EUA na região tem sido questionada. “Antes, era confrontada pela União Soviética, agora, pela China. O interesse dos EUA é que a gente continue sendo um quintal, mas eles agora são símbolo de um império em decadência”.

Camila Vidal lembra que, apesar da reordenação da geopolítica global e os avancos da China, os Estados Unidos ainda são a maior potência militar e econômica do mundo, e um parceiro relevante para o Brasil. Os EUA são o segundo maior mercado das exportações brasileiras, sobretudo de produtos como petróleo bruto, aeronaves, ferro e aço, café e celulose. Essa relação responde por cerca de 500 mil empregos.

Além de acordos comerciais, ela frisa que os americanos mantêm diversos programas de cooperação no país, desde intercâmbio educacional a programas militares. “É uma relação muito densa e longeva que não deve se enfraquecer no curto prazo”, avalia.

Diplomacia paralela com Eduardo Bolsonaro

Em meio ao endurecimento da política externa, as negociações oficiais com autoridades têm dado lugar às tratativas com atores políticos paralelos. Um dos agentes centrais dessa relação bilateral é Eduardo Bolsonaro, que se licenciou do cargo em março e se mudou para os EUA. Segundo ele, está no país por medo de ser preso e para trabalhar para que Washington aplique sanções a Brasília para pressionar pela anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, entre eles o pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Carlos Gustavo Poggio diz que se trata da “diplomacia com arma na cabeça, baseada na chantagem”. E completou: “É diplomacia com uma linguagem de mafioso, já que o Brasil não pode entregar o que os EUA querem”.

O filho do ex-presidente é próximo de integrantes da aliança conservadora CPAC, sigla para Conservative Political Action Conference. Fidel Flores diz que desde 2019 essa cúpula conservadora está em expansão. “Existe um projeto político transnacional no entorno trumpista que tenta dobrar a Justiça brasileira a favor de seu aliado, sendo que um dos atores da disputa interna doméstica tem uma capacidade pouco antes vista de influência em um governo estrangeiro”, avalia.

Perda de capital político por Trump pode amenizar tarifas?

Camila Vidal acredita que Trump não visa criar um ambiente político para descredibilizar as eleições no Brasil em 2026, por exemplo, caso o candidato da esquerda seja vencedor.

Contudo, o entorno político formado por integrantes dessa aliança conservadora transnacional podem projetar essa estratégia: “Eu acho que Trump não pensa tão à frente. A questão dele é o recado que passa de que os EUA é forte e que ele pode impor sanções.”

Já Fidel Flores considera que as tensões na relação entre Brasil e Estados Unidos tendem a se acirrar com a proximidade do início do julgamento de Jair Bolsonaro pelo STF. No entanto, no longo prazo, Trump pode revisar as medidas, com a proximidade das eleições para o Congresso no ano que vem. “Como a popularidade de Trump está em baixa, essas dinâmicas que podem afetar o sucesso eleitoral podem trazer o governo a posições menos radicais”, projeta.