Na guerra da Ucrânia, combatentes russos arriscam sofrer tortura, humilhação e assassinatos por parte de seus próprios superiores. Segundo especialistas, prática é generalizada e normalizada nas fileiras.”Anularam o meu filho”, lamenta Tatiana Bykova em uma mensagem de vídeo. Seu filho, Andrei, foi morto por seus próprios comandantes. Ela os nomeia e diz que os odeia. Primeiro, extorquiram dinheiro dele, exigindo metade da indenização que ele recebeu por um ferimento. Quando ele se recusou a dar o dinheiro e comprou um carro, eles passaram a exigir o veículo. Como ele se recusou a entregar o carro, foi morto.

Bykova apresentou uma queixa ao Comitê de Investigação da Federação Russa e à Procuradoria-Geral, mas nada aconteceu. Andrei Bykov foi simplesmente declarado desaparecido. “Como me disseram, ele foi espancado até a morte. Ele está em uma área arborizada perto de Galitsynivka”, disse Bykova, se referindo a um povoado na região de Donetsk, na Ucrânia, em entrevista ao portal de notícias independente russo Verstka, que funciona no exílio.

Em outubro de 2025, o portal lançou um projeto para chamar a atenção para a prática generalizada de tortura e a chamada “anulação” – termo coloquial para o assassinato de soldados no Exército russo. O Verstka também publicou os nomes de dezenas de comandantes envolvidos.

No dia seguinte, Aleksandr Pashchenko, membro do parlamento pelo partido governista Rússia Unida na república da Khakassia, respondeu às críticas de um cidadão indignado, dizendo: “Na linha de frente, você seria anulado por declarações como essa”. Ele confirmou, assim, que as “anulações” de fato acontecem.

Como tortura e assassinato ocorrem?

“O assassinato dos próprios soldados é apenas um aspecto do estado deplorável do Exército russo. A tortura também é generalizada”, disse o especialista militar Yuri Fyodorov à DW. Vídeos de tortura podem ser encontrados em canais do Telegram dedicados à guerra. Por exemplo, o especialista relatou que soldados são jogados em um fosso e alimentados com lixo por uma ou duas semanas, dependendo do capricho do comandante. Ou são forçados a “abraçar uma árvore”. Eles são amarrados a troncos de árvores e deixados lá por um ou dois dias sem comida ou água.

Um soldado pode ser baleado e declarado desaparecido ou morto em combate. Além disso, fica a critério dos oficiais enviar um soldado para um ataque onde o risco de morte é particularmente alto.

Os motivos para uma “anulação” podem variar bastante: insubordinação, violações disciplinares, consumo de álcool, discussões com oficiais ou recusa em entregar parte do salário.

“Quando se considera pessoas descartáveis ​​e se é capaz de matar alguém enviando-a para uma luta sem esperança, então você também matará no terreno porque alguém cometeu uma ofensa, não entregou dinheiro ou houve um desentendimento”, disse o especialista militar Jan Matvejew à DW.

A psicanalista Alina Putilovskaya fala de uma “transferência” e “externalização” de emoções agressivas. “Os superiores que cometem esses atos cruéis de violência têm superiores que os ridicularizam – por exemplo, por meio de ordens irrealistas e retendo suprimentos vitais de suas unidades. Esses oficiais de alta patente projetam externamente uma imagem de superioridade, invencibilidade e prosperidade. Isso leva a sentimentos muito difíceis entre os comandantes de campo, que então descontam em seus subordinados.”

Segundo Putilovskaya, estes últimos sentem medo porque podem se tornar alvo da agressão de seus superiores. Sentem também pena e culpa em relação aos camaradas afetados por não poderem ajudá-los.

“Anulação” substitui disciplina

Yuri Fyodorov atribui as “anulações” no Exército a oficiais corruptos, assim como a militares criminosos e indisciplinados. Ele afirma que o corpo de oficiais na Rússia se tornou mais problemático desde a década de 1990, pois muitos permaneceram no Exército simplesmente porque não conseguiam encontrar um propósito na vida civil. Eles complementavam seus parcos salários por meio de práticas corruptas, como obrigar soldados a realizar trabalhos não remunerados. São precisamente esses tipos de oficiais que estão servindo atualmente na guerra na Ucrânia.

Especialistas concordam que o Exército russo também mudou nesta guerra devido ao recrutamento de mercenários que lutam por dinheiro e criminosos condenados, que trazem consigo seus próprios valores. “Para manter toda essa quadrilha sob controle, os métodos mais brutais tiveram que ser usados”, diz Fyodorov. Um dos primeiros exemplos notórios disso foi um vídeo que circulou nas redes sociais em novembro de 2022. Ele mostrava mercenários do Grupo Wagner matando um camarada com uma marreta.

Por que “anulações” não são punidas?

Segundo Jan Matveyev, a principal razão para as “anulações” é a falta de disciplina e a ausência de um sistema militar devidamente estruturado. “Tudo isso fomenta a impunidade, o que torna a liderança impossível. Ninguém no Exército russo foi punido por crimes de guerra graves, como os assassinatos em Bucha e Mariupol. Isso sinalizou imediatamente que se podia simplesmente matar pessoas sem ser punido”, afirma Matveyev. Ele está convencido de que as “anulações” corroeram a disciplina no Exército. Como o Exército não está fazendo nada a respeito, essa tendência só se intensifica.

Ambos os especialistas acreditam que o Exército russo não seria mais capaz de combater se a tortura, os maus-tratos, a extorsão, os “anulação” e os crimes de guerra cessassem. “Na realidade, todo o seu funcionamento se baseia na impunidade e na exploração dos soldados como recurso, como escravos”, enfatiza Fyodorov.

Na perspectiva da psicanalista Alina Putilovskaya, as “anulações” são um método de exercer coerção, controle e intimidação. “A liderança do Exército não está interessada em construir relacionamentos de longo prazo com as pessoas porque sabe que novos relacionamentos surgirão em breve. Duas coisas mantêm uma comunidade unida, mesmo em guerra: o vínculo emocional e a coerção. Se um deles se perde, como neste caso com o vínculo emocional, então a coerção toma conta, o que neste caso se intensifica em uma crueldade que atinge seu extremo.”

Matveyev também destaca que os russos não entendem pelo que estão lutando. “O Exército ucraniano sabe, mesmo enfrentando circunstâncias muito difíceis e sofrendo com grandes problemas, pelo que está lutando. Está defendendo seu país. A maioria no Exército russo está bem ciente de que este é um crime de guerra grave e hediondo, que engloba uma infinidade de crimes menores, e que eles precisam se acostumar com isso”, disse o especialista.