24/08/2022 - 12:31
Empréstimo de coração de D. Pedro 1º reacende interesse por como o país vê seu papel na história daquela que foi sua maior colônia. Para especialistas, imaginário popular lusitano ainda é de nação heroica e desbravadora.Noticiada à exaustão e festejada com toda a pompa nos dois lados do Atlântico, a chegada do coração de Dom Pedro 1º a terras tupiniquins em comemoração aos 200 anos da Independência reacende o interesse por como Portugal lida com o passado de uma nação que, um dia, foi a sua maior colônia.
O traslado da relíquia é controverso, e o governo do presidente Jair Bolsonaro é acusado de instrumentalizar a ação com fins políticos a poucos dias do 7 de Setembro. Representantes da cidade do Porto, guardiã do coração de D. Pedro 1º, porém, negam qualquer conotação política no empréstimo do órgão.
Historiadora e colunista da DW Brasil, Ynaê Lopes Santos diz não se surpreender com o entusiasmo português com o envio da relíquia ao Brasil. “Eu acho que eles [autoridades portuguesas] sabem exatamente o que estão fazendo — estão reafirmando a perspectiva de que a independência brasileira é devedora de português”, analisa.
Para o pesquisador português Vítor Manuel Fernandes Oliveira Sousa, mais sensato do que ações como o traslado do coração do monarca é devolver artefatos em museus, “peças pilhadas de territórios longínquos”, aos seus locais de origem.
“Isso tem a ver com a própria identidade dos países de onde foram roubados e saqueados e que ficaram sem esse espólio, que poderá ser importante para mostrar às várias gerações como é que foi constituído o próprio país”, afirma Sousa, pesquisador de estudos pós-coloniais no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho.
Ele pondera que isso deve ser feito contextualizando a violência subjacente a essas peças e a história delas. Tentativas simplistas podem acabar como o criticado envio do coração de D. Pedro 1º ao Brasil, algo que Sousa considera “arcaico e de mau gosto”.
Visão ilusória sobre o passado colonizador
Para Sousa, a ação é ufanista e usar o coração como “objeto-fetiche” não contribui para as relações entre Brasil e Portugal. “Afinal de contas, existe um passado comum, que foi violento por parte de Portugal e tem de ser assumido enquanto tal”, explica.
Numa perspectiva que ainda precisa ser desconstruída e muitas vezes é ensinada em sala de aula, a colonização portuguesa seria distinta da de outros impérios europeus, aponta Sousa. “Como se fosse uma colonização fofinha, doce e, portanto, menos violenta, o que não corresponde à verdade.”
A jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques afirma que esse olhar açucarado sobre o passado é parte da identidade nacional portuguesa. “É muito antiga e aceita na cultura portuguesa a ideia ilusória de que Portugal foi um país que colonizou de maneira mais branda”, pontua.
Doutoranda do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde pesquisa a memória do colonialismo português, a brasileira Luciana Martinez faz coro com Sousa e Henriques e diz que ainda impera em Portugal a ideia de “um país que desbravou o mundo e que foi colonizador, mas não colonialista, que é benevolente”.
Martinez diz ver nos últimos anos um esforço maior por parte da nação europeia em repensar seu passado colonial, mas assinala que as reflexões ainda ficam, em sua maioria, restritas às ex-colônias africanas.
“O que a gente tem ainda muito forte é esse imaginário de nação portuguesa calcado na ideia do que eles chamam de descobrimento, que é a expansão colonial na América”, afirma.
Narrativas de heroísmo e grandeza
De acordo com a pesquisadora brasileira, referências fortes ao imaginário popular lusitano — às grandes navegações, às viagens, ao mar — estariam presentes no discurso público ainda hoje. “Tem um outro nome, mas é a mesma coisa que eles estão dizendo, é sobre esse ser português que desbravou o mundo.”
Essa visão de colonizador bonzinho, somada aos desbravamentos navais, contribui, segundo Sousa, para que os portugueses enxerguem o próprio país como “heroico” e “mais extenso que sua dimensão geográfica”. São perspectivas que se fortaleceram durante a ditadura portuguesa (1933-74) e permaneceriam firmes até hoje no que é lecionado em sala de aula.
“O ensino da história em Portugal ainda reflete uma visão do luso-tropicalismo, uma quase teoria do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre adotada pela ditadura portuguesa”, comenta. Por essa lógica, a colonização portuguesa seria diferente da de outros impérios europeus, sendo marcada por empatia e até afeição por parte dos colonizadores para com os povos subjugados.
Para o pesquisador, é necessário discutir a história não só dos descobrimentos, mas também do que ele chama de “encobrimentos” — por exemplo, pretextos usados por Portugal para justificar o extermínio de povos originários nas antigas colônias.
Sousa concorda que “a ideia de que Portugal teve uma importância imensa no mundo” é comum e bastante evocada em momentos solenes, quando se fazem referências aos descobrimentos e aos poetas Luís de Camões e Fernando Pessoa.
Ele diz ver características luso-tropicalistas em diversos pronunciamentos do atual presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa; por exemplo, quando ele usa palavras como “portugalidade” ao falar à pátria. O termo foi adotado em meio à tentativa de barrar processos de independência das antigas colônias na década de 1950, quando Portugal argumentou, perante a Organização das Nações Unidas (ONU), que elas eram parte integrante do território português em vez de territórios autônomos.
Já Martinez lembra o discurso proferido pelo presidente no ano passado, por ocasião do aniversário da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura fascista de 41 anos. Na ocasião, Rebelo de Sousa advertiu os portugueses dos riscos de passar de um “culto acrítico triunfalista exclusivamente glorioso da nossa história” a uma “demolição global e igualmente acrítica de toda ela”.
O presidente mencionou ainda a Guerra Colonial (1961-1974), em que Angola, Guiné-Bissau e Moçambique lutaram por emancipação do domínio português. O evento é considerado decisivo para o fim da ditadura salazarista, que tachava de terrorismo a resistência anticolonial.
“E aí de repente ele [o presidente] diz: 'Mas veja D. Pedro 1º, o imperador filho do rei português que deu independência a essa potência do futuro'. Eu vejo um certo recuo ao Brasil em um momento de desconforto, de lidar com um passado colonial mais recente”, explica Martinez.
“Ainda que talvez não seja mais tão explicitamente dito, você tem a sombra do Brasil ainda sendo usada como testemunha desse colonialismo que não é tão violento”, avalia Martinez. “Obviamente isso não existe.”
Sentimento de superioridade e antibrasileiro
O luso-tropicalismo teorizado por Gilberto Freyre contribui para que muitos portugueses tenham a visão de que Portugal é “pai do Brasil, de Angola, de Moçambique e de todas as ex-colônias”, afirma Sousa. No entanto, esse orgulho não quer dizer que pessoas desses países serão vistas com bons olhos.
Não raro, imigrantes brasileiros são vítimas de xenofobia e racismo no país europeu. Joana Gorjão Henriques, autora dos livros Racismo em português: o lado esquecido do colonialismo e Racismo no país dos brancos costumes, cita dois motivos principais para isso.
“O primeiro é que os brasileiros são a maior comunidade imigrante em Portugal, já são cerca de 250 mil. Depois, há um complexo ainda de país colonizador, embora tenham se passado 200 anos da Independência”, explica.
“Continua a existir esse complexo de superioridade dos portugueses em relação aos brasileiros, que faz com que exista um sentimento antibrasileiro, de xenofobia e de racismo, quando se mistura a questão da cor da pele”, acrescenta Henriques.
O racismo, lembra Martinez, também é um problema histórico no Brasil. “Na verdade, a sobrevivência do passado colonial e da colonização estão dos dois lados do Atlântico. E o racismo é, sem dúvida, a faceta mais visível dessas sobrevivências.”
“Empréstimo é respeito à história comum”
Presidente da Câmara da cidade do Porto e, junto à Irmandade da Lapa, guardião do coração de D. Pedro 1º, Rui Moreira refuta veementemente que o empréstimo da relíquia ao Brasil tenha qualquer conotação política.
“Ver na trasladação um favor político inadvertido, ou, pior, um apoio político deliberado ao governo de Bolsonaro, é pura má-fé. Somos alheios à disputa eleitoral em curso no Brasil, mas não podemos ficar indiferentes às comemorações de um acontecimento histórico, a proclamação da independência, que transformou profundamente dois países”, escreveu Moreira em artigo ao jornal português O Público no início de agosto.
Moreira, autoridade máxima do Porto, rebatia as críticas de um colega, o ex-deputado João Teixeira Lopes, que, em artigo anterior no mesmo diário, classificou o ato como “grave erro”, disse ver instrumentalização “total e descarada” e censurou as lideranças políticas da cidade portuguesa por, na sua visão, promoverem um “inequívoco ato de apoio simbólico e político” ao governo brasileiro.
A medida foi aprovada em unanimidade pelos vereadores. A jornalistas, Moreira declarou que o empréstimo do coração é uma homenagem à “pátria irmã” daqueles que compreendem o “valor sentimental” que o item tem para o povo brasileiro.
Há 50 anos, em 1972, quando Brasil e Portugal viviam sob ditaduras, ação semelhante levou ao Museu do Ipiranga, em São Paulo, os restos mortais do primeiro imperador brasileiro, onde a ossada repousa até hoje.
Chefe de gabinete de Moreira e integrante da comitiva portuguesa que acompanha o traslado do coração do monarca, Vasco Ribeiro rejeita o paralelo histórico. “Não foi uma decisão à revelia da cidade do Porto. Todos votaram em unanimidade o empréstimo [do coração]. Foi escrutinado, fizemos em uma democracia”, argumenta.
Indagado sobre se os portugueses têm ciência dos riscos de o episódio servir a fins políticos, Ribeiro disse que não comentaria o caso. “Respeitamos as críticas, mas não comentamos política externa. Respeitamos a história comum e só isso motivou o empréstimo do coração.”