10/05/2022 - 15:59
“Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado.” Esta citação do livro mundialmente famoso 1984, de George Orwell, descreve em uma frase a importância da história para a política. E a jornalista Katie Stallard destaca essa citação em seu livro recém-publicado Dancing on Bones – History and Power in China, Russia, and North Korea. Nele, ela descreve como os poderosos da Rússia, China e Coreia do Norte usam a história para seus propósitos.
Em entrevista à DW, ela diz que “regimes autoritários sabem o poder da história, que é uma ferramenta crucial para obter apoio da população”. A história gera legitimidade, está intimamente ligada à identidade dos cidadãos e tem a vantagem para os governantes autoritários de poder ser manipulada de acordo com as necessidades. “Os sucessos econômicos vêm e vão. Já a história é no que você pode confiar”, afirma Stallard.
A história como justificativa para a guerra na Ucrânia
A agressão russa na Ucrânia é o exemplo atual de que uma compreensão revisionista da história pode ter consequências mortais. Mesmo antes da eclosão da guerra, Putin publicou em julho de 2021 um ensaio intitulado “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”.
No texto, o presidente russo acusa o Ocidente de um “revisionismo perigoso”. Segundo o historiador Andreas Kappeler em uma análise para a revista Osteuropa, Putin quer se contrapor a essa alegação como um “estadista onisciente” que conhece a “única verdade histórica”.
A verdade, segundo Putin, é que russos e ucranianos sempre foram uma única entidade espiritual, e o Ocidente está tentando transformar a Ucrânia em uma “anti-Rússia” – e Moscou nunca permitirá isso e, se necessário, impedirá pela força das armas.
Em 9 de maio, quando a Rússia comemorou a vitória sobre a Alemanha nazista seguindo a tradição da União Soviética, Putin reiterou seu ponto de vista e foi além ao afirmar que o Ocidente havia planejado um ataque contra a Rússia.
A visão de mundo soviética de Putin
A narrativa da suposta unidade russo-ucraniana – que o Ocidente ignora – faz parte de uma visão de mundo bipolar e de pensar em termos de grandes categorias de poder, afirma Kappeler. Para Putin, apenas os países poderosos – como Rússia, EUA e China – desempenham um papel, e “pequenos” Estados, como a Ucrânia, não têm agenda própria. Além disso, as grandes potências, por sua vez, estariam envolvidas numa competição ideológica que está sendo travada com todos os meios à disposição.
Essa visão de Putin, que Kappeler classifica como teoria da conspiração, está associada ao nacionalismo étnico e à tese de que os nazistas supostamente tomaram o poder na Ucrânia. Nela, o líder russo faz uso de supostos nazistas para o que, segundo Kappeler, é “o elemento mais importante da ideologia de integração russa: a vitória soviética sobre a Alemanha de Hitler”. A visão de mundo de Putin é a de um agente do serviço secreto da extinta União Soviética.
Xi Jinping: timoneiro da história
Muitos padrões da visão etnonacionalista da história de Putin e seus apoiadores no Kremlin também podem ser encontrados entre as autoridades chinesas. A China quer fazer melhor do que a União Soviética, que o presidente chinês Xi Jinping cita repetidamente como um exemplo de alerta. A União Soviética teria se desintegrado porque seus líderes não conseguiram erradicar o “niilismo histórico” que minou a crença na causa comunista.
Para evitar o destino da União Soviética, o Partido Comunista Chinês (PCC) escreveu, entre outras coisas, uma história oficial atualizada do partido em 2021, fortemente feita sob medida para Xi Jinping. O Diário do Povo Chinês, um órgão de imprensa do partido, escreve sobre o líder da China: “Nesta nova era, o secretário-geral Xi Jinping nos ajudou a compreender os mecanismos da evolução e as leis da história em ação no longo e tortuoso fluxo do tempo e a tempestade global. Ele tomou a decisão certa em cada encruzilhada.” A narrativa do PCC é difundida na imprensa, redes sociais, cinema e jogos de computador. Visões alternativas são ilegais.
Partido Comunista Chinês garante a unidade do país
O partido oficial determina há anos o que pode ser pensado e escrito na China. Em essência, trata-se de uma “estrutura ideológica que justifica intervenções cada vez maiores e mais abrangentes do partido na política, economia e política externa”, segundo o ex-chanceler australiano e especialista em China Kevin Rudd.
Os superpoderes do PCC são historicamente justificados: antes de os comunistas tomarem o poder, a China era fraca e dividida, e a desunião permitiu que o Ocidente humilhasse o país. Somente o PCC, de acordo com o subtexto, é capaz de unir o país e, assim, reconduzi-lo à sua antiga força.
Dessa forma, o PCC continua o que os nacionalistas chineses começaram no século 19, como evidencia Bill Hayton em seu livro The Invention of China. Naquela época, a China multiétnica foi reinterpretada como uma cultura uniforme han-chinesa, e as tradições manchus, mongóis e de muitos outros povos foram extraídas da história para dar lugar à visão de uma China que sempre esteve unida. Assim, hoje, os efeitos desse desejo de unidade são vivenciados por uigures e tibetanos, que estão sendo colocados em campos de reeducação e têm sua língua e cultura reprimidas.
É apropriado que Xi Jinping, falando ao Comitê Central do PCC em 2013 sobre a importância da história, tenha citado o estudioso confucionista Gong Zhishen ao dizer que “para destruir um país é preciso primeiro apagar sua história”. Foi um aviso para questionar a unidade de 5 mil anos da China, o que é, claro, uma ficção na versão do PCC.
Embora seja verdade que havia uma certa continuidade da língua e da doutrina confucionista, é falso dizer que a cultura chinesa han sempre foi dominante no que é hoje o território da República Popular da China.
Na verdade, a Dinastia Ming (1368-1644) foi a última em que os chineses han governaram. Antes disso, durante séculos, dinastias de outros povos, como os mongóis, prevaleceram na maior parte do que hoje é a China. A última dinastia foi fundada pelos manchus e governou de 1644 até a proclamação da república, em 1º de janeiro de 1912.
No desejo de criar uma história unificada na qual a Rússia de hoje e a República Popular da China emergiram sem ruptura, fecha-se o círculo com Putin, que nega ou distorce a história da Ucrânia para declarar que russos e ucranianos são um só povo.
“Território recuperado”
Há também uma obsessão por questões territoriais em ambos os sistemas. As afirmações históricas de Putin omitem em grande parte os crimes da era Stalin, mas dedicam considerável atenção ao território da União Soviética, que também incluiu a Ucrânia, Belarus, Estados bálticos, Estados da Ásia Central e outros.
A China, por exemplo, usa há anos argumentos históricos sobre o Mar da China Meridional. O país declara um mar do tamanho do Mar Mediterrâneo como seu território, citando evidências históricas questionáveis. Ao mesmo tempo, Pequim se recusa a reconhecer a decisão da Corte Internacional de Arbitragem, que declarou nulas todas as reivindicações históricas.
Para Stallard, voltar-se para as questões territoriais tem duas funções: por um lado, enfatizar as humilhações do passado, em que nos foi tirado algo que é nosso por direito. E, ao mesmo tempo, enfatizar a força dos atuais líderes – estamos retomando o que é nosso. “Trata-se de defender sua soberania, sentir-se forte e ter orgulho de defender seu próprio país”, afirma.
Repressão contra opiniões divergentes
Mesmo que existam diferenças no conteúdo das narrativas históricas na Rússia e na China – por exemplo, o culto à personalidade mais pronunciado da China em torno de Xi –, os padrões são claros.
Ambos os sistemas reivindicam uma unidade e continuidade que nunca existiram. Qualquer um que questiona isso na Rússia ou na China enfrenta punições severas. E esses países constroem um inimigo externo – o Ocidente – do qual apenas eles – Putin ou Xi – podem proteger a nação e vincular a história com as reivindicações territoriais.
“A vontade de manipular a história para fins políticos não é vista apenas em sistemas autoritários”, afirma Stallard. Mas apenas sistemas autoritários reprimem opiniões divergentes.