13/08/2025 - 12:21
Nomenclatura de remédios segue regras específicas para evitar ambiguidades, associações indevidas e riscos à saúde da população.Antes de chegar às prateleiras das farmácias, os medicamentos passam por um extenso processo de avaliação, que não se limita à sua fórmula ou eficácia. A definição do nome comercial que será estampado na embalagem é uma etapa estratégica e regulada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A escolha deve priorizar a segurança do paciente e evitar qualquer ambiguidade que possa levar ao uso incorreto do produto.
Segundo a Anvisa, identificar de forma clara o nome do remédio é importante para garantir que o tratamento seja feito corretamente e sem riscos. Erros de medicação ainda são comuns em sistemas de saúde no mundo todo, e muitas vezes estão relacionados à confusão entre nomes parecidos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou, em 2017, que os custos diretos globais com danos evitáveis por falhas desse tipo chegaram a 42 bilhões de dólares (R$ 231,6 bilhões) naquele ano.
A nomeação de um medicamento precisa, portanto, considerar muito mais do que o apelo comercial. O nome não pode induzir o paciente ao erro nem ser confundido com outro já existente. Ele deve respeitar critérios técnicos definidos em normas específicas do órgão regulador sanitário, que podem vetar palavras, combinações de letras e até certas terminações, dependendo do risco identificado.
Como os nomes são criados e por que alguns são vetados
No Brasil, um mesmo princípio ativo, ou seja, a substância responsável pelo efeito terapêutico do medicamento, pode ser encontrado em diferentes versões. Medicamentos inovadores (ou de referência) e seus similares recebem nomes de marca definidos pelas farmacêuticas. Já os genéricos devem ser identificados apenas pela Denominação Comum Brasileira (DCB), que corresponde ao nome oficial do princípio ativo. Segundo o farmacêutico e ex-presidente da Anvisa Dirceu Barbano, essa distinção é importante para evitar confusões e reforçar a função da marca como um elemento comercial, e não como indicativo de eficácia.
Nos casos em que a marca é permitida, o processo de criação começa nas próprias farmacêuticas, com sugestões vindas de áreas como marketing, jurídico e pesquisa. “O processo é longo, mas começa sempre com um brainstorming criativo”, afirma Edilson Bianqui, diretor de prescrição médica. As ideias são testadas em simuladores fonéticos, bancos de dados e plataformas internacionais para evitar duplicidade de nomes ou associações negativas em outras línguas.
Depois disso, o nome precisa passar pelos critérios da Anvisa. Há regras para impedir o uso de mais de 50% da DCB ou do nome do princípio ativo. “Por exemplo, a dipirona tem oito letras, mas o ‘I’ se repete, então contamos sete letras. O nome proposto para medicamento não pode usar mais de três letras desse princípio ativo”, explica Bianqui.
Na prática, se um nome fosse proposto como “Diropina”, ele não seria aceito, pois utiliza várias letras do princípio ativo dipirona. Se o nome contiver “D, I, R, N” (quatro letras do princípio ativo), também será recusado, pois já ultrapassa o limite de três letras permitido.
Barbano afirma que esse cuidado tem o objetivo de reduzir o risco de erro na prescrição, uso e administração dos medicamentos pelas pessoas. Além disso, os nomes não podem conter promessas de efeito, sugerir uso não indicado ou induzir à automedicação.
Para apoiar a análise, a Anvisa utiliza ainda uma ferramenta chamada POCA (Phonetic and Orthographic Computer Analysis, ou, em tradução livre: Análise Computadorizada Fonética e Ortográfica), desenvolvida em parceria com a FDA, agência americana de vigilância sanitária, que compara os nomes propostos com os já registrados. Segundo Bianchi, cerca de metade das sugestões da indústria são rejeitadas de imediato.
Há ainda outras restrições, como nomes que lembrem sintomas ou doenças. Para medicamentos que requerem prescrição, as exigências são ainda mais específicas. “Todos os critérios aplicados para a decisão de aprovação ou recusa de uma determinada marca comercial têm como base a mitigação ou eliminação de riscos de ocorrência de erros ou confusão”, reforça Barbano.
Expressões como “cura” e “rápido alívio” são proibidas
A escolha do nome de um medicamento não envolve apenas criatividade e critérios técnicos, ela também precisa respeitar limites éticos e regulatórios. Termos como “cura” e “rápido alívio” não são aceitos justamente porque podem criar falsas expectativas sobre o efeito real do produto.
Segundo Victor Hugo Avallone, especialista na área de Ciências da Vida e Saúde do escritório TozziniFreire Advogados, a Anvisa veda expressões que valorizem ações terapêuticas sem comprovação, pois podem levar o consumidor a acreditar que o medicamento tem eficácia superior a outro com a mesma composição. O problema, segundo ele, se intensifica em produtos vendidos sem prescrição médica, nos quais o paciente decide pela compra sem a intermediação de um profissional de saúde.
Além disso, a agência não permite nomes compostos por abreviaturas, letras isoladas, sequências aleatórias, números sem significado claro ou palavras que sugiram que o medicamento é inofensivo, natural ou livre de efeitos adversos. “Um nome mal escolhido pode induzir o consumidor a erro quanto à categoria do medicamento ou às condições de uso”, afirma Avallone.
Parte dessas restrições também se aplica à rotulagem dos medicamentos. Barbano explica que, além dos critérios para a marca, há regras específicas sobre o que pode ou não ser colocado na embalagem. “No caso do uso dos termos ‘cura’ e ‘rápido alívio’, trata-se de uma limitação relacionada à rotulagem”, afirma. A norma em vigor, a RDC nº 768/2022, proíbe qualquer expressão que possa dar a entender que um produto tem efeito mais intenso do que outro com a mesma composição.
A justificativa, segundo o ex-presidente da Anvisa, é evitar interpretações distorcidas sobre os reais benefícios do uso. “A promessa de ‘cura’ pode gerar falsa esperança de que o desaparecimento de sintomas relacionados com doenças crônicas represente a cura de uma doença incurável, ou mesmo levar pessoas a abandonarem o tratamento necessário”, diz. No caso do “rápido alívio”, a restrição se deve ao risco de exagero sobre a velocidade de ação do medicamento, que pode variar conforme o organismo e o quadro de cada paciente.
A análise de nomes, tanto para a marca quanto para a rotulagem, segue o mesmo princípio: proteger o consumidor de informações enganosas. “A Anvisa considera a segurança do termo proposto, com foco na prevenção de erros de prescrição, dispensação, administração ou uso”, completa Avallone.
Medicamentos cujos nomes foram registrados antes da entrada em vigor dessas normas, porém, continuam a ser comercializados sem alteração, mesmo que seus nomes não se encaixem nos critérios atuais da agência.
Um exemplo clássico disso, segundo os especialistas, é o Dorflex, um medicamento amplamente conhecido para o tratamento da dor. A palavra “Dor”, que remete diretamente a um sintoma, está explícita em seu nome. “Como a marca foi registrada antes dessa norma, ela segue sendo comercializada normalmente. Sob as regras atuais, esse nome jamais passaria”, afirma Bianqui.
Nome no Brasil x nome no exterior
A forma como os medicamentos são nomeados pode variar entre os países, mesmo quando o princípio ativo é a mesmo. Por isso, empresas que pretendem comercializar remédios no Brasil precisam adaptar as marcas internacionais às exigências da Anvisa. Em alguns casos, o nome é aceito como está, em outros, é necessário adequá-lo às normas locais.
“Em geral, ao trazer um medicamento do exterior, a empresa precisa adaptar o nome às regras da Anvisa, evitando termos proibidos e sem usar mais de 50% da DCB”, explica Bianqui. “Quem avalia se o nome escolhido pode causar confusão ou induzir a erro é a Anvisa. No entanto, quando a empresa já possui registro do nome de forma global, a Anvisa tende a aceitar esse nome, mesmo que, às vezes, ele não cumpra todas as regras.”
Segundo Barbano, essa adaptação faz parte do processo regulatório e é encarada com naturalidade pelas empresas. “As empresas precisam avaliar se as marcas utilizadas em outros países, ou internacionalmente, respeitam os requisitos aplicados no Brasil. No entanto, há situações em que elas precisam ser adaptadas em decorrência das diferentes línguas oficiais e particularidades dos países”, afirma. Ele destaca que já há uma tendência de alinhamento global nas exigências para nomes de medicamentos, o que facilita a atuação das farmacêuticas em diferentes mercados.
Mesmo assim, há casos clássicos de nomes distintos. Um exemplo é a dipirona, cujo nome consta na Denominação Comum Brasileira (DCB) e é usado nas embalagens brasileiras, especialmente nos genéricos. “No caso dos medicamentos genéricos, apenas essa indicação deve aparecer. Ou seja, o nome do insumo ativo deve ser utilizado como está na DCB”, diz Barbano. Já em países europeus onde a substância é autorizada, ela é chamada de metamizol ou metamizole.