Após décadas de ditadura e guerra civil, Síria escolhe novo parlamento no próximo domingo. Mas nem todos os sírios votarão. Não haverá partidos nem campanhas eleitorais. Então como funcionará o pleito?Após mais de cinquenta anos de ditadura e uma década de guerra civil, a Síria realizará suas primeiras eleições parlamentares no dia 5 de outubro. Mas o processo de votação para a composição de um novo parlamento está longe de ser simples – e está repleto de controvérsias e polêmicas.

Nem todos os sírios irão às urnas. Também não haverá partidos políticos ou cartazes de campanha. Em vez disso, os votos serão emitidos por vários comitês, razão pela qual a primeira eleição do país após a ditadura é descrita como “indireta”.

A ditadura na Síria foi instaurada a partir de um golpe de Estado em 1971, quando Hafez al-Assad assumiu o poder. Em 2000, o filho dele, Bashar Al-Assad, passou a governar até a queda do regime, em dezembro de 2024.

“A realidade na Síria não permite a realização de eleições tradicionais, dada a presença de milhões de pessoas deslocadas tanto dentro quanto fora do país, a ausência de documentos oficiais e uma frágil estrutura jurídica”, afirmou o governo provisório sírio em um comunicado no final de junho, explicando por que as eleições devem ser indiretas.

Por esse motivo, o processo para eleger uma nova Assembleia Popular ocorrerá em várias etapas. Também em junho, o chamado Comitê Supremo para as Eleições da Assembleia Popular, composto por 11 membros, foi nomeado diretamente pelo governo de transição da Síria para supervisionar a eleição.

Esse Comitê Supremo nomeou, por sua vez, subcomitês nos 62 distritos eleitorais da Síria. Os distritos devem ser levados em conta de acordo com o tamanho da população, o que faz com que alguns deles, portanto, tenham mais de um assento.

Na etapa seguinte, os subcomitês nomeiam diretamente entre 30 e 50 membros para representar cada cadeira de seu distrito. Essas pessoas formarão um “colégio eleitoral”, ou seja, um grupo de eleitores encarregado de escolher os parlamentares.

Série de “qualificações”

Ao nomear esses indivíduos, os subcomitês devem levar em consideração diferentes características, incluindo qualificações como diplomas universitários e profissões, “influência social” – ou seja, pessoas que tenham sido ativas e sejam conhecidas em suas comunidades – e também diversidade, garantindo que haja pessoas deslocadas, com deficiência e ex-prisioneiros.

Além de atributos como idade e cidadania, os membros do colégio eleitoral não devem ter feito parte do antigo regime (a menos que tenham desertado durante a guerra civil), estar servindo nas forças de segurança ou ter antecedentes criminais. E ao menos 20% dos membros devem ser mulheres. Ao todo, em toda a Síria, o colégio deve ter entre 6.000 e 7.000 pessoas.

Preocupações com o poder presidencial

De acordo com a SANA, agência oficial de notícias da Síria, as listas finais de candidatos foram publicadas em 18 de setembro. Qualquer cidadão tem agora três dias para recorrer contra qualquer um dos candidatos que considere que não deveria estar na lista.

Após a aprovação dos membros do colégio eleitoral, alguns farão campanha para obter assentos na Assembleia Popular. Não há partidos políticos e a campanha não é pública. Ela deve durar uma semana e ocorre apenas entre os membros do colégio eleitoral.

Finalmente, no dia das eleições, todo o colégio eleitoral votará em 121 membros para o novo parlamento sírio.

O processo eleitoral já havia sido adiado, o que as autoridades atribuíram ao fato de que havia muitos candidatos interessados em integrar o colégio eleitoral. Esse processo, no entanto, deve estar concluído até o final de setembro.

Originalmente, havia 140 cadeiras em disputa, mas a votação foi adiada em várias partes da Síria, a exemplo da região de Sweida, dominada pela minoria drusa, e em partes de Raqqa e Hassakeh, controladas pela minoria curda. Isso significa que cerca de 19 cadeiras não serão escolhidas neste mês.

O governo de transição sírio afirmou que as eleições foram adiadas nessas áreas devido a questões de segurança. Nos últimos meses, essas áreas foram palco de violência intercomunitária e sectária, que causou a morte de milhares de pessoas. Mas, na realidade, as eleições foram adiadas porque o governo sírio não controla essas áreas.

Após o término do processo eleitoral, mais 70 cadeiras serão adicionadas ao novo parlamento. Mas esses parlamentares serão eleitos diretamente pelo presidente interino, Ahmad al-Sharaa, um ex-líder miliciano que assumiu o cargo depois que sua facção, Hayat Tahrir al-Sham, liderou a revolta para derrubar o ditador Bashar al-Assad em dezembro de 2024.

Controvérsias e conflitos

Há aspectos positivos no processo, segundo escreveu Haid Haid, analista sírio e membro sênior não residente da Iniciativa de Reforma Árabe, com sede em Paris, no início deste mês.

“No papel, o processo eleitoral introduz melhorias modestas, mas significativas, com múltiplas fases consultivas, mecanismos de apelação e medidas para aumentar a participação das mulheres”, avaliou.

Observadores internacionais também foram convidados a monitorar o processo. Além disso, o Comitê Supremo é mais diversificado do que outras iniciativas e não é dominado por integrantes do Hayat Tharir al-Sham, disse Haid.

Mas o processo também é “ofuscado por ambiguidades estruturais e questões pendentes que o tornam vulnerável à manipulação”, afirmou, argumentando que isso pode resultar em falta de confiança por parte da comunidade.

Relatos de jornalistas na Síria indicam que boa parte da população reconhece que não há como realizar eleições diretas neste momento. Uma pesquisa recente, realizada pelo Centro Árabe para Pesquisas e Estudos Políticos, com sede no Catar, entre julho e agosto, apontou que 57% dos quase 4.000 entrevistados consideram o momento político positivo.

Mas outros sírios são muito mais críticos, dizendo que o processo, altamente controlado, é uma “charada” superficial, uma forma de legitimar o governo de transição sem realmente buscar um verdadeiro consenso ou a democracia.

Dúvidas sobre o processo

Algumas das vozes mais críticas dessas eleições são membros de minorias sírias. Nas últimas semanas, representantes de vários grupos minoritários publicaram cartas ou declarações criticando o processo, chamando-o de ilegítimo.

No início desta semana, 14 diferentes grupos da sociedade civil também publicaram um documento recomendando mudanças, argumentando que vários aspectos da eleição simplesmente dão ao presidente al-Sharaa controle excessivo sobre o processo eleitoral e a composição final da Assembleia Popular.

De acordo com a constituição temporária da Síria, decretos presidenciais só podem ser revogados por uma maioria de dois terços na Assembleia Popular. É por isso que os 70 representantes eleitos diretamente por al-Sharaa são tão importantes – se eles representarem apenas os seus interesses, será muito difícil conseguir maioria de dois terços contra o presidente no parlamento.

Críticas também têm sido feitas a respeito do papel que a nova Assembleia Popular irá desempenhar, quando finalmente for eleita. A principal tarefa será reformular uma série de legislações antigas, aprovar novas leis para abrir o país e redigir uma nova constituição, bem como preparar eleições diretas nos próximos três a cinco anos.