Usada pelo governador do Rio de Janeiro, palavra importada da retórica de Trump mistura crime e terrorismo para tentar legitimar ações militares e reconfigurar debate público.Narcoterroristas: foi assim que o governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL), definiu as facções criminosas que atuam no estado, durante a mais letal operação da história da polícia. Mas, mais do que um adjetivo, a expressão carrega um rótulo político. Ao importar um termo popularizado por Donald Trump, o discurso transforma um problema de segurança pública em uma guerra moral e ideológica.

O termo “narcoterrismo” foi cunhado na década de 1980 pelo ex-presidente do Peru Fernando Belaúnde Terry para descrever o fenômeno da interseção entre narcotráfico e terrorismo no país.

A expressão funde duas categorias jurídicas distintas para justificar o uso de estratégias militares, deslocar responsabilidades do Estado e criar uma narrativa de “inimigo interno” que se encaixa no projeto de polarização política em curso, segundo especialistas, e que poderia, ainda, abrir caminhos para intervenções estrangeiras no país.

“A utilização desse termo, que tem sido intensificada nos últimos anos, nada mais é que uma parte de uma narrativa que escancara a total não eficiência, a deficiência das políticas públicas de segurança para lidar com os problemas que são problemas de segurança pública”, diz Pablo Nunes, cientista social e coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).

Para especialistas consultados pela DW, a definição dos suspeitos mortos na megaoperação policial que deixou mais de uma centena de mortos no Rio de Janeiro nesta terça-feira como “narcoterroristas” carrega forte mensagem política.

“Usam [o termo] para tentar uma coisa que chame muita atenção, porque as eleições estão aí, como se eles estivessem fazendo alguma coisa para melhorar essa realidade. Infelizmente no Brasil nem direita, nem esquerda, nem extrema direita, nem extrema esquerda conseguem entregar uma resposta efetiva para os problemas de segurança pública”, avalia Rafael Alcadipani, professor da FGV – EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Alcadipani acrescenta que a utilização do termo buscaria ainda mascarar a falta de resultados concretos do governador Cláudio Castro na área de segurança pública.

Alinhamento político

Além disso, o uso do termo revela também um alinhamento ideológico e político com os setores da extrema direita internacional. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, por exemplo, vem classificando como “narcoterroristas” os mortos em ataques feitos pelas Forças Armadas americanas a embarcações no Caribe – ações à margem da lei internacional.

Já o governo de Javier Milei, aliado de Trump na Argentina, anunciou a inclusão do Primeiro Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV) no Registro de Pessoas e Entidades Vinculadas a Atos de Terrorismo (Repet), a lista oficial do governo que reúne organizações e indivíduos classificados como ameaças à segurança nacional.

“Os regimes de direita e extrema direita buscam combater o crime organizado com muita força. Em El Salvador, houve suspensão de direitos políticos e humanos, com punições muito duras contra suspeitos. E parte da sociedade acaba sendo influenciada por esse discurso, já que se ‘bandido bom é bandido morto’, quem vai matar melhor será o regime de força”, avalia José Niemeyer, cientista político e professor de Relações Internacionais do Ibmec-RJ.

Para Pablo Nunes, a ideia de ter terroristas ocupando um espaço nas cidades, contudo, é perigosa pois isso pode estigmatizar ainda mais a população que mora em comunidades, aumentando a violência política e policial contra essas pessoas.

“Nesse ponto transformar e mobilizar o conceito de narcoterrorismo é uma estratégia muito arriscada e perigosa, que pode fortalecer ainda mais essa ideia de que esses territórios são locais que precisam ser de certa maneira conquistados pelo Estado, que são territórios inimigos”, diz.

Sem lastro jurídico

Para além dos contornos políticos, há carência jurídica na classificação de traficantes como terroristas, dado que, por definição, um grupo terrorista promove violência por ideologia ou objetivo político ao contrário do tráfico, que busca o lucro.

“No Brasil, as organizações criminosas começaram a ocupar um espaço deixado pelo Estado, inclusive promovendo algumas atividades de Estado, então isso acaba dando algum combustível para aqueles que querem sustentar a classificação como terroristas”, afirma o advogado criminalista e professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), Pierpaolo Bottini.

Para o jurista, contudo, é necessário muito cuidado em definir essa presença no território como uma atuação terrorista, dado o histórico de intervenções que se utilizam dessas razões pelo mundo.

“As pessoas precisam ter ciência de que classificar essas organizações como terroristas pode ter uma repercussão internacional indesejável. Para além dos efeitos nacionais, é muito importante verificar que, se for concebido por outras nações como organização terrorista, se abre espaço para intervenções que podem ameaçar a própria soberania nacional”, completa.

Segurança e inteligência

Especialistas alertam que rótulos políticos como “narcoterrorismo” desviam o foco daquilo que realmente importa: a capacidade do Estado de planejar, coordenar e agir com base em informação qualificada.

Pablo Nunes, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, relembra a apreensão de 117 fuzis com a prisão de Rony Lessa, onde não foi disparado um tiro sequer, para enfatizar a importância do investimento em inteligência e no combate aos líderes das facções.

Para Rafael Alcadipani, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é necessário criar uma política nacional de enfrentamento ao crime organizado, com a organização das policiais estaduais e a criação de uma autoridade nacional antimáfia, com um plano nacional de enfrentamento ao crime organizado.

“Se isso não acontecer, precisamos de políticos que falam a mesma língua. Não adianta cada um ficar falando na sua língua. Precisamos de políticos que falam a mesma língua para que a gente possa procurar uma política pública efetiva de enfrentamento ao crime organizado no Brasil”, afirma.