04/12/2025 - 11:52
Século 16 popularizou atlas com delimitações políticas, inspirando-se em mapas medievais. Até hoje, tradição religiosa influencia percepção dos territórios.A história das fronteiras tem uma origem muito mais inusitada do que geralmente se imagina. Segundo mostra um novo estudo, uma peça-chave está em um mapa bíblico da era renascentista.
Em 1525, o impressor Christopher Froschauer publicou em Zurique um Antigo Testamento com um acréscimo revolucionário: a primeira Bíblia que inclui um mapa da Terra Santa. Mas o seu autor, Lucas Cranach, o Velho, se viu acidentalmente diante de um problema monumental: a gravura havia sido impressa ao contrário.
Nela, o Mediterrâneo aparecia a leste da Palestina em vez de a oeste. Mas tão pouco se sabia sobre esta região que ninguém pareceu perceber. O mundo acabava de ficar literalmente de cabeça para baixo.
O grande fracasso acabou se tornando também um triunfo histórico, explica Nathan MacDonald, professor de Interpretação do Antigo Testamento na Universidade de Cambridge e autor de um estudo publicado na revista científica The Journal of Theological Studies.
O mapa acabaria tendo consequências inesperadas. Não apenas transformou a maneira de ler a Bíblia , mas também contribuiu para difundir uma ideia que ainda molda o mundo: a noção das fronteiras políticas como linhas precisas que dividem territórios e soberanias.
Origem na Idade Média
Mas a história começara, na verdade, ainda antes. Ao contrário do que se costuma pensar, não foram os cartógrafos renascentistas que inventaram as fronteiras nos mapas.
Segundo MacDonald, a verdadeira revolução começou com os mapas cristãos medievais da Terra Santa. Eles mostravam o antigo Israel dividido segundo doze tribos, com limites claramente assinalados para cada território.
Aqueles cristãos não estavam pensando em política. Para eles, as fronteiras tribais eram uma forma de visualizar a herança espiritual que acreditavam compartilhar com os israelitas. Eram, essencialmente, mapas religiosos.
O mapa de Cranach de 1525, portanto, não criou o modelo de fronteiras delimitadas, mas amplificaria uma tradição medieval. Ao entrar em uma Bíblia impressa, esta forma de representação passou do âmbito erudito ao público geral e se tornou um padrão visual.
A partir de então, contemplar o mapa de Cranach podia se tornar uma experiência quase mística. Como explica MacDonald, muitos fiéis realizavam uma peregrinação virtual, percorrendo mentalmente o Monte Carmelo, Nazaré ou as águas do Jordão.
Do Renascimento ao atlas moderno
Mas algo mudou a partir do século 15. Os mapas da Terra Santa começaram a aparecer nos primeiros atlas modernos ao lado dos mapas da Europa contemporânea.
A edição de Ulm da Geografia de Ptolomeu, publicada em 1482, incluía o mapa quadriculado de Vesconte da Terra Santa. Com o tempo, os cartógrafos do Renascimento incorporaram esse modo de representar o território e o integraram em sua cartografia não religiosa.
A mudança foi gradual, mas definitiva. Como lembra MacDonald, citando um estudo de 1995 do geógrafo James Akerman, apenas 45% dos mapas do atlas de Abraham Ortelius mostravam fronteiras em 1570. Quase noventa anos depois, em 1658, a proporção subiu para 98% nos atlas das províncias francesas de Nicolas Sanson.
A troca de influências foi recíproca. Por um lado, os mapas bíblicos influenciaram como os europeus começaram a compreender as fronteiras políticas. Por outro, a difusão da nova mentalidade territorial alterou a interpretação bíblica.
Fronteiras bíblicas sobrevivem
Por exemplo, os comentários bíblicos ingleses sobre Gênesis capítulo 10 – o trecho que descreve a dispersão dos descendentes de Noé após o dilúvio – teria começado a ser interpretado não apenas como uma lista de linhagens, mas como um esquema que organizava o mundo em zonas distintas.
No contexto inglês do século 16, muitos comentaristas costumavam interpretá-lo como uma grande divisão continental. Mas, em meados do século 17, já o entendiam como uma descrição minuciosa de fronteiras, ou seja, uma repartição territorial na qual os descendentes de Noé se estabeleceram como senhores privados e fixaram limites conforme o número de suas famílias.
Hoje, a Bíblia continua sendo um guia importante para crenças básicas sobre os Estados-nação e as fronteiras, explica o pesquisador. Muitos consideram que essas ideias estão autorizadas pela Bíblia e, portanto, são verdadeiras e corretas de maneira fundamental.
Um vídeo recente publicado pelo Departamento de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos, um agente cita Isaías capítulo 6 versículo 8 enquanto sobrevoa de helicóptero a fronteira entre Estados Unidos e México. Já quem pergunta a ferramentas de inteligência artificial se as fronteiras são bíblicas pode obter como resposta um rápido sim.
Para MacDonald, estas são duas entre várias expressões de uma interpretação amplamente difundida ao redor do mundo. Mas a realidade é mais complexa, e diversos grupos simplificam ou distorcem textos antigos para avançar pautas políticas atuais, alerta o especialista.
A história do mapa invertido de Cranach lembra, como diz MacDonald, que a Bíblia nunca foi um livro imutável e que, à medida que muda, também se transformam as ideias correntes sobre o mundo.
ht/cn (ots)
