26/03/2020 - 12:05
Um estudo realizado por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, que contou com a participação de pesquisadores australianos, demonstrou que o consumo global e o comércio internacional de commodities associadas ao desmatamento das florestas tropicais, como madeira e produtos agrícolas como tabaco, cacau, café e algodão, aumentam em 20% o risco de contrair malária na África, no Sudeste Asiático, na Índia e na América do Sul.
“O desmatamento pode aumentar a transmissão da malária. Nesse sentido, o comércio internacional pode influenciar indiretamente o risco da doença. Quantificamos que cerca de 20% do risco de malária nos hotspots de desmatamento é impulsionado pelo comércio internacional”, afirma o biólogo Leonardo Suveges Moreira Chaves.
Chaves é primeiro autor do artigo científico “Global consumption and international trade in deforestation-associated commodities could influence malaria risk”, publicado recentemente na revista “Nature Communications”.
LEIA TAMBÉM: Por que tantas epidemias se originam na Ásia e na África
“Mostramos ainda que, em 2015, cerca de 110 milhões de pessoas corriam risco de contrair malária devido ao desmatamento nos países em desenvolvimento”, revela Chaves.
Commodities e desmatamento
De acordo com Maria Anice Mureb Sallum, professora titular do Departamento de Epidemiologia da FSP e pesquisadora corresponsável pelo trabalho, “nosso estudo estabelece pela primeira vez o peso do comércio internacional nos casos de malária em todo o mundo”.
Para realizarem o trabalho, os pesquisadores usaram bancos de dados comerciais de commodities associadas ao desmatamento com o objetivo de demonstrar que seu consumo, nos países ricos, pode aumentar o risco de malária nos países em desenvolvimento.
“Obtivemos essas evidências através da aplicação da análise dos dados disponíveis para 189 países”, explica Chaves. Utilizando computação de alto desempenho, examinou-se mais de um bilhão de rotas da cadeia de suprimentos internacional para descobrir a contribuição do comércio global na promoção do risco de malária nos países em desenvolvimento.
“Identificamos commodities ligadas ao desmatamento em países em desenvolvimento com transmissão endêmica de malária e mostramos como elas são demandadas por consumidores no mundo desenvolvido”, diz Chaves.
Produtos agrícolas
De acordo com a pesquisa, as commodities que mais pesam no comércio global para o aumento dos casos de malária são madeira e produtos agrícolas como tabaco, cacau, café e algodão, cujas cadeias produtivas provocam desmatamento das florestas tropicais do planeta e o consequente aumento do risco de transmissão da malária.
“Não encontramos carne e óleo de palma nos principais elos comerciais porque essas mercadorias são comercializadas, predominantemente, por países com incidência de malária relativamente baixa”, explica Chaves.
Este trabalho se insere no âmbito do projeto Genômica de paisagens em gradientes latitudinais e ecologia de Anopheles darlingi, um projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O estudo contou com a participação da equipe do professor Manfred Lenzen, da Universidade de Sydney, na Austrália.
Estudos de caso: Nigéria, Tanzânia, Camarões e Uganda
O artigo fornece diversos exemplos de países em desenvolvimento onde a exportação de commodities para o mundo desenvolvido está relacionada ao desmatamento e ao aumento no risco de malária em 2015 (ano-base dos dados empregados no trabalho).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou a ocorrência de 214 milhões de casos de malária no mundo em 2015 (88% na África). Em 2018, o total foi de 228 milhões de casos.
A Nigéria sofre o maior risco, com 5,98 milhões de casos em 2015, ou 9,8% dos 61 milhões de casos de malária estimados no país em 2015. As commodities ligadas ao desmatamento e ao risco de malária na Nigéria são a madeira exportada para a China, o cacau (Holanda, Alemanha, Bélgica, França, Espanha e Itália) e o carvão vegetal (países da Comunidade Europeia).
No caso da Tanzânia, o estudo atesta um risco de 5,66 milhões de casos de malária, ligados às exportações de tabaco (para a Europa e a Ásia), algodão cru (Ásia) e madeira (Índia).
A malária ligada ao desmatamento em Camarões (risco de 5,49 milhões de casos) pode ser conectada às exportações de cacau (para Holanda, Espanha, Bélgica, França e Alemanha) e de madeira (China, Bélgica, Itália e Estados Unidos).
Da mesma forma, a malária (risco de 5,49 milhões de casos) foi associada ao desmatamento em Uganda, que por sua vez é potencialmente impulsionado pelas exportações de matérias-primas como café (para Itália, Alemanha, Bélgica, Estados Unidos e Espanha) e algodão (Sul e Sudeste Asiático).
As áreas tropicais remanescentes podem ser similarmente ligadas a consumidores distantes, principalmente por meio da exportação de madeira da República Democrática do Congo, Zâmbia, Mianmar, República Centro-Africana e Angola. O principal destino é a China.
O caso brasileiro
No Brasil, 99% dos casos de malária se concentram na Amazônia. Naquela região, aproximadamente um terço do desmatamento está associado à exportação de recursos naturais e commodities, como madeira, soja e carne bovina.
Os países que mais importaram produtos brasileiros vinculados ao risco de malária no Brasil, em 2015, foram Estados Unidos e Japão. As principais commodities brasileiras com destino aos Estados Unidos foram: madeira, àquelas da indústria de couro e carne bovina. As importações japonesas foram principalmente soja e carvão vegetal.
Em 2015, as exportações de commodities do Brasil responderam pelo risco de 1.700 casos de malária, entre os 143 mil casos registrados pelo Ministério da Saúde.
Por outro lado, a importação de commodities pelo Brasil respondeu por risco de 50 mil casos de malária nos países dos quais importa, por exemplo, couro (camurça e vestuários) e madeira em tora. São eles: Nigéria, com 13 mil casos de malária ligados às exportações de commodities para o Brasil, Índia (11 mil), Congo (6 mil), Camarões (5 mil) e Tanzânia (5 mil).
Filantropia e desmatamento
A pesquisa identifica como principais países importadores de produtos relacionados à malária Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha e Japão. Mas essas são as mesmas nações que fornecem apoio financeiro para programas de controle da malária, especialmente na África Subsaariana.
Em 2017, o investimento global para controle e prevenção da malária foi de aproximadamente US$ 3,2 bilhões, com doadores de alta renda fornecendo 72% do financiamento (Estados Unidos, 39%; Comitê de Assistência ao Desenvolvimento, 21%; Reino Unido, 9%; Fundação Bill & Melinda Gates, 2%).
“É interessante notar que os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão, os países que mais contribuem com o financiamento a programas de controle de malária na África, são os mesmos países cujo consumo e importação de commodities estão relacionados ao desmatamento das florestas tropicais e ao aumento dos casos de malária”, observa Maria Anice Sallum.
Consumo consciente
As pegadas da malária cobrem redes globais inteiras da cadeia de produtos. Por exemplo, a decisão de um turista alemão, ao escolher consumir frango em um restaurante japonês, tem impacto no risco de malária na população brasileira vivendo em comunidades diretamente expostas aos vetores na Amazônia.
Essa rede de interligações acontece da seguinte forma: os casos de malária no Brasil são em parte consequência do desmatamento da floresta amazônica para produção de soja. Uma parte da produção da soja brasileira é exportada para a Argentina, onde é processada e transformada em farelo de soja. O farelo de soja argentino é então exportado para o Vietnã, onde é processado em ração animal e vendido a granjas na Tailândia para alimentação de frango. Finalmente, a carne de frango tailandês é exportada para restaurantes japoneses, conectando a produção de soja brasileira aos restaurantes japoneses.
Responsabilidades globais e controle da malária
O controle da malária pode se beneficiar de iniciativas focadas na redução do desmatamento e distúrbios florestais, como: 1) implementação de políticas fortes de proteção florestal pelos países exportadores; 2) adoção de padrões de compras e iniciativas de monitoramento e divulgação de origem e importação por produtores de produtos intermediários e finais; 3) diálogo entre cadeias de suprimentos e exigência dos importadores na legalidade e sustentabilidade da produção primária; 4) colaboração da indústria com organizações de pesquisa, governo e organizações não governamentais para identificar e desenvolver soluções que forneçam meios de subsistência sustentáveis; e 5) desenvolvimento de padrões de sustentabilidade e certificação de produtos não implicados no desmatamento.