Pigmentos para tintura, em Orccha

Berço da arte da estamparia, a Índia domina a técnica de tingimento desde a Antiguidade, exportando não só tecidos como técnicas de tingir. Os tecidos indianos deslumbram pela intensidade das cores, a ponto de muitos perguntarem como conseguem ser tão coloridos.

As explicações sobre a exuberância das cores incluem desde fatores religiosos a características ambientais. No Mahabharata, por exemplo, o mais longo poema épico já escrito, as propriedades mágicas das cores são descritas em sânscrito como expressão material dos poderes sensoriais das divindades mitológicas. Uma das faces mais famosas do Rajastão, o Estado que é o maior produtor de têxteis da Índia, são as mulheres envoltas em saris multicoloridos, carregando vasos de água na cabeça, ladeadas por homens com longos bigodes e vistosos turbantes de muitas voltas.

Os primeiros tecidos de algodão do mundo surgiram na cidade de Daca (hoje capital de Bangladesh), ex-maior produtora de fibras da Índia.

A ÍNDIA POSSUÍA A MAIOR INDÚSTRIA TÊXTIL DO MUNDO ATÉ 1947. HOJE, ESSA É A SEGUNDA MAIOR ATIVIDADE ECONÔMICA DO PAÍS.

Em 2600 a.C. o país já comercializava tecidos, trocando-os por lã, lápis-lazúli e marfim da Mesopotâmia. Mercadores levaram peças ao Egito, a países da África, à Grécia, a Roma e às costas dos mares Mediterrâneo, Negro e Cáspio. Ao chegar à Índia, em 1498, o navegador português Vasco da Gama maravilhou-se ao encontrar panos de algodão estampados com motivos florais, listras e arabescos. De volta a Portugal, além das especiarias, levou tecidos e abriu as portas da Índia ao comércio exterior.

Antes da sua independência, em 1947, a Índia possuía a maior indústria têxtil do mundo. A tecelagem era uma atividade tão comum que chegou a ocupar metade da população. Depois de anos de declínio, o setor tornou-se a segunda mais importante atividade econômica. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), graças à sua disponibilidade de mão de obra de baixo custo, a Índia atualmente só perde para a China na produção de algodão.

Além do algodão, os tecidos de linho e seda também respondem pela fama dos têxteis indianos. A seda é conhecida no país há mais de 3.500 anos. Conta-se que para o produto ser aceito entre os monges budistas chineses, contrários à morte de qualquer espécie, os indianos garantiam que obtinham a seda sem matar a lagarta. Com a China liderando o mercado, a Índia é o segundo produtor mundial, importando apenas seda crua.

Sem estresse

No desértico Rajastão, os tecidos são uma atração turística. Mais que produtos de comércio, eles exibem uma beleza que ultrapassa o aspecto comercial e funcional. Susana Uribarri, artista plástica paulista especialista em arte têxtil e sagrada, esteve no Rajastão recentemente visitando oficinas a céu aberto, fábricas, pequenas empresas e museus, e viu como as cores impregnam todos os aspectos do vestuário raja. “Elas têm conteúdo simbólico e são ricas em associações e significados”, diz Susana, que conheceu também o processo criativo dos artesãos e tecelões.

A habilidade e os conhecimentos técnicos são transmitidos oralmente. “O artista nasce numa casta em que o avô, o bisavô e o tataravô cultivam esse acervo cultural vivo, exercendo a atividade sem o menor esforço”, explica a artista. “Ao tecer o tapete, o artista está dando nós, mas, de repente, surgem ali um vaso de flor, arabescos cruzados, um barrado em volta, tudo certinho, nada torto. A gente se pergunta: de onde surgiu isso? Eles acessam um banco de dados de milênios atrás. Não é um ego pensante que diz ‘vou criar isto hoje’; é outra coisa. E percebe-se que tudo é muito eficiente”, afirma Susana.

A artista brasileira não esquece as palavras que ouviu de um guia no Rajastão: “Você vai andar todo esse pedaço da Índia e não vai ver um indiano estressado, porque quem faz o que eles fazem está satisfeito. Eles seguem a primeira máxima do hinduísmo: aceite a vida como ela se apresenta.”

Sari esvoaçante

Os ocidentais gostam de ver as mulheres indianas envoltas no sari, a roupa feminina tradicional, que dispensa costuras, botões, zíper, colchete e velcro.

“Foi a primeira peça de roupa que vi venderem com um papelzinho de instruções, numa loja do Rajastão”, diz a artista plástica Susana Uribarri. “É encantadora, porém complicada, pelo menos para as ocidentais. Vestir um pode ser encarado como um verdadeiro desafio”, explica.

O tecido pode ser de todas as cores e padrões. Mede 6 metros de comprimento por 1,5 m de largura. É enrolado em volta da cintura, formando uma espécie de saia, e o restante é jogado por cima do ombro, como um xale, ou cobrindo a cabeça, conforme o arranjo desejado.

É simples, mas implica uma arte. Susana garante que, após três tentativas, só conseguiu vestir um com a ajuda da esposa do lojista, que riu de sua falta de jeito. Os vestidos podem ser bordados, pintados à mão, impressos ou com lantejoulas. Os mais sofisticados são os saris de brocado de seda, feitos em tear manual. Não há dois iguais.

Um olhar atento mostra que, conforme a região, os modos de amarrar o sari diferem entre si, assim como, dependendo da religião, há diferentes modos de amarrar um turbante. Os artesãos que fazem os saris integram famílias da casta dos tecelões. Vivem dessa arte, transmitida de pais para filhos como um tesouro, um acervo vivo.

Acima, fiadora e vendedores de tintura, em Agra. No centro, tapetes prontos. Abaixo, comerciante em Jodhpur, tecidos secando em terraços e trabalhadoras de Udaipur, com saris iridescentes.

Acima, fiador em Varanasi. Ao lado, tecidos à venda em Jodhpur. Abaixo, a listra vermelha na cabeça da vendedora indica que é casada. Quanto mais longa, mais longa será a vida do seu marido. À direita, as etapas do block printing

A técnica de tintura parcial, que deu origem à estamparia no Rajastão, permanece inalterada há séculos: uma parte das fibras é protegida ou coberta com uma substância (cera, argila ou uma máscara), para não ser exposta à tintura.

Outra técnica tradicional, originária da África e levada pelas caravanas de mercadores para a Ásia, bem conhecida no Ocidente, é o adire, ou tie-dye (amarrar e tingir). Consiste basicamente em amarrar o tecido de formas diferentes e tingi-lo. Repetindo sucessivas tinturas, dobras e amarrações dão surgimento a vários padrões de estamparia.

 

O dhoti de Gandhi

No final do filme Gandhi, o líder indiano, interpretado pelo ator Ben Kingsley, aparece envolto num longo tecido enrolado na cintura e entre as pernas, que parece um fraldão. É o dhoti, o sari dos homens idosos. Gandhi não só usava o dhoti como fazia as próprias roupas. O filme mostrao enrolando o fio para fazer o tecido num tear de madeira. O político ajudou a desenvolver a economia da Índia pedindo aos seus seguidores que ocupassem uma hora do dia tecendo algodão. Recomendou, explicitamente, que usassem roupas caseiras, o khadi, boicotando os tecidos britânicos. E exortou as indianas, ricas ou pobres, a gastar uma parte do dia fabricando suas roupas em apoio ao movimento de independência.

A técnica do batik, caracterizada por desenho ou pintura com máscaras de cera, nasceu na Índia, difundiu-se por Tailândia e Sri Lanka e chegou à Indonésia, onde ganhou seu nome, derivado do verbo tik: fazer pontos. É utilizada em tecidos de algodão e seda, na montagem de quadros, painéis, almofadas e vestuário. Na Indonésia, faz parte da educação tradicional feminina e é um suporte para a meditação, porque exige paciência, concentração e empenho.

Para fazer o batik são necessárias duas matérias-primas: a cera de abelha e a parafina. Derretidas e aplicadas, elas delimitam os contornos do desenho ou cobrem o fundo como máscara. Usam-se, também, duas ferramentas: o tjanting, espécie de caneta com bico fino por onde a cera quente passa, sendo aplicada sobre o tecido, depois tingido com cores variadas; e os tjaps, carimbos de metal usados no batik “impresso”. Praticante de meditação, Susana Uribarri chegou por experiência própria à técnica. “É minha mestra, onde mergulho e trago o mais profundo do meu ser.”

Ovelhas e camelos

Os rústicos tapetes durries são feitos pelos pastores com lã de ovelha e camelo tingida. Eles tingem com índigo, cúrcuma, curry, urina – para fi- xar a cor, que é rica em ureia – e cocô de camelo para conseguir o tom amarelo queimado, de terra. Depois de secar, moem e misturam a tinta com óleo de castor. Da árvore do miróbalo, usada na medicina ayurvédica, tiram a frutinha, fazem uma papa que vira pó, acrescentam água fervente e dela extraem várias cores para tingir fibras, fios e tecidos.

O processo de fazer o corante é extremamente complexo, pois são as matériasprimas naturais que produzem tintas para tingir e para fazer o processo de estampado com block printing, técnica de imprimir desenhos por meio de blocos semelhantes a carimbos, de madeira de teca esculpida à mão, como uma xilogravura. A tradição é forte em Jaipur, capital do Rajastão. O tecido é esticado numa mesa e os artesãos carimbam os desenhos com blocos molhados em tinta, com precisão para não se notar onde acaba um carimbo e começa outro.

Cada bloco representa uma parte do desenho, e é estampado com cores diferentes até finalizar a estampa. O primeiro bloco é o mais complexo, porque é o traço de fora, o desenho. O encaixe da estampa é registrado manualmente, mas com tanta habilidade e concentração que nada desanda. Depois, o tecido pode ser tingido, e a área que não foi “carimbada” fica preenchida com outra cor.

AS PEÇAS SECAM AO SOL, A UMA TEMPERATURA QUE, NO VERÃO, BEIRA 50ºC. AS CORES MUDAM, MAS NUNCA DESBOTAM.

As peças secam ao sol a uma temperatura que no verão beira 50°C. As cores mudam, mas nunca desbotam. Os desenhos são de flores, plantas e símbolos do hinduísmo, como o pássaro Garuda, que é a montaria de Vishnu. As cores são extraídas de fontes vegetais e minerais, dependendo da disponibilidade local. O azul vem da folha do índigo, o amarelo, do durmari, parente da mostarda, e o vermelho vem da cana-de-açúcar.

A cidade de Sanganer, próxima a Jaipur, praticamente vive do block printing. Segundo Susana Uribarri, a mão de obra é toda de famílias que trabalham em casa, em cooperativas e indústrias de fundo de quintal, com terraços onde as peças ficam secando e fixando ao sol. Os homens mais velhos e os jovens aprendizes produzem as estampas de “olhos fechados”.

“Eles fazem coisas lindas e em grande quantidade, mobilizados contra a entrada de indústrias maiores que produzam mais, vendam por melhor preço e tomem conta do mercado”, observa Susana. “Cada oficina tem uma cota de produção, comercializada por cooperativas. É a forma deles garantirem a sobrevivência e preservarem sua própria cultura e tradição.”