01/07/2021 - 9:23
No final de março de 2020, um artigo escrito por pesquisadores do KWR Water Research Institute, de Nieuwegein, nos Países Baixos, relatou a detecção de fragmentos de RNA do SARS-CoV-2 em amostras de esgoto de Amsterdã e de cinco localidades. A notícia se espalhou rapidamente e estimulou virologistas, engenheiros ambientais e bioquímicos espalhados pelo Brasil a procurar rastros do coronavírus causador da covid-19 na rede nacional de esgotos.
“A descoberta de que fragmentos do SARS-CoV-2 são eliminados nos excrementos humanos chamou a atenção de quem já monitorava outros vírus e bactérias no esgoto”, explica a biomédica Maria Inês Zanoli Sato, gerente do Departamento de Análises Ambientais da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). A empresa estatal começou a procurar pelo patógeno na primeira semana de abril do ano passado. Mais ou menos na mesma época, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) iniciou um trabalho semelhante em Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fez o mesmo em Belo Horizonte e em parte da cidade vizinha de Contagem.
- Treinando para recuperar o olfato após a covid-19
- Maioria dos que sobrevivem à covid grave tem sintomas prolongados da doença
Coletas semanais
Em São Paulo, bem antes da pandemia, a vigilância ambiental em busca da circulação de patógenos no esgoto já era rotina na Cetesb. Mas o acompanhamento era focado em vírus como o da poliomielite e em bactérias como Vibrio cholerae, causadora da cólera. Seu objetivo é atuar como uma sentinela e alertar as autoridades sanitárias e de saúde pública sobre a presença e os níveis de concentração de agentes infecciosos em rios, represas, córregos, na rede de esgoto e em suas estações de tratamento. O monitoramento do coronavírus foi iniciado por meio de coletas semanais nas cinco principais estações de tratamento da Região Metropolitana de São Paulo. “Assim que começamos o monitoramento, já detectamos índices elevados de SARS-CoV-2 no esgoto, mesmo com casos oficiais superbaixos, indicando uma possível subnotificação”, lembra Sato.
Com o passar do tempo, a Cetesb ampliou o raio de coleta para regiões mais vulneráveis da Grande São Paulo, a fim de investigar a concentração do coronavírus em áreas sem coleta e tratamento de esgoto, e posteriormente a cidades do litoral e do interior do estado.
Um projeto de curto prazo da agência ambiental é comparar a concentração de SARS-CoV-2 no esgoto dos dois municípios paulistas que tiveram sua população adulta completamente imunizada como parte de estudos científicos que procuram testar a eficácia de vacinas contra o coronavírus. “Vai ser importante acompanhar o comportamento do RNA viral nos esgotos de Serrana e de Botucatu”, comenta a biomédica. “Na primeira cidade, a população foi vacinada com a CoronaVac, que usa o vírus -2 inativado. Na segunda, as pessoas receberam o imunizante da AstraZeneca, que utiliza outra tecnologia, a de vetor viral, que usa o DNA do adenovírus de chimpanzé contendo genes da proteína spike do SARS-CoV-2).”
Boletins sobre vírus
Em Niterói, medições feitas na rede de esgoto encontraram no início da pandemia indícios de uma concentração muito alta de RNA do SARS-CoV-2 no bairro Boa Esperança ainda antes de terem sido confirmados os primeiros pacientes com covid-19 na região. “Como a Secretaria Municipal de Saúde não tinha nenhuma notificação de casos na região, uma equipe de médicos da família foi até a comunidade para realizar testes na população, isolar os casos positivos e rastrear seus contatos”, conta Marize Pereira Miagostovich, chefe do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). “Por meio desse monitoramento, ajudamos a conter o espalhamento da pandemia naquela área.”
A cidade fluminense tem uma rede de esgoto que chega a mais de 90% de seu meio milhão de habitantes. Atualmente, a equipe da Fiocruz, em parceria com a administração local, coleta e analisa quinzenalmente amostras de esgoto bruto proveniente de oito estações de tratamento de esgoto do município. Os dados das análises são divulgados quinzenalmente em boletins disponibilizados para a população por meio de aplicativo de celular. “Os moradores de Niterói têm acesso aos resultados de nosso trabalho junto com os dados mais comuns sobre a pandemia no município, como números de casos, internações e óbitos”, explica Miagostovich.
A microbióloga Juliana Calábria, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG, e outros pesquisadores decidiram, em iniciativa conjunta com a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), aproveitar uma parceria com a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e a estrutura na universidade para monitorar a presença do coronavírus em Belo Horizonte e Contagem. O laboratório de microbiologia de água e esgoto estava equipado para fazer análises biomoleculares, incluindo a identificação e a quantificação de RNA viral. Com o apoio adicional de outros órgãos estaduais, os trabalhos tiveram início em abril do ano passado em 17 pontos de coleta das duas cidades mineiras.
Ferramenta de monitoramento
“Inicialmente, tínhamos dúvida se a água contaminada do esgoto poderia ser um meio de transmissão da covid-19. Felizmente, encontramos exclusivamente fragmentos do SARS-CoV-2 nos dejetos, o que torna o coronavírus inócuo”, explica Calábria. “As tentativas de cultivar o SARS-CoV-2 a partir de amostras de esgoto foram infrutíferas e corroboraram a ideia de que o esgoto não é uma ameaça, mas uma ferramenta de monitoramento da circulação do vírus na comunidade.”
Durante um ano, a iniciativa foi tocada como um projeto-piloto e publicou 34 boletins com os dados sobre a concentração do vírus em diferentes pontos da capital mineira. “Percebemos que a elevação da carga de RNA viral no esgoto de Belo Horizonte ocorre vários dias antes do aumento no número de casos notificados na cidade”, diz a microbióloga. “Podemos usar esse monitoramento como uma ferramenta de alerta precoce. É como se fosse equivalente a uma testagem indireta e massiva de pessoas.”
Depois de um ano como projeto-piloto, a iniciativa se expandiu, em abril de 2021, para outras três regiões do país e deu origem à Rede Monitoramento Covid Esgotos. Além de Belo Horizonte, a rede integra hoje capitais como Curitiba, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro e o Distrito Federal –, todas trabalhando com a mesma metodologia desenvolvida na capital mineira. O projeto em âmbito nacional é financiado pela ANA, em conjunto com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Proposta em expansão
Na esteira dos pioneiros, outros pesquisadores se juntaram ao time nacional de investigação sanitária. Em meados de maio de 2020, o Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs), do Rio Grande do Sul, acionou a equipe da virologista Caroline Rigotto, da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, para intensificar a vigilância epidemiológica do coronavírus em mananciais de abastecimento de água, corpos hídricos altamente impactados por esgoto doméstico, estações de tratamento de água e efluentes de grandes hospitais da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Com o rápido entendimento mundial, chancelado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de que o vírus era facilmente degradado no ambiente, inclusive no contato com o cloro, o monitoramento de águas para consumo foi abandonado e o foco foi direcionado exclusivamente para o esgoto. Com o passar dos meses, a coleta se expandiu para mais municípios e envolveu outras instituições públicas.
Rigotto mantém contato frequente com seus colegas que desenvolvem um trabalho semelhante em outras partes do país e do exterior. “Fazemos parte de uma rede de laboratórios de monitoramento do SARS-CoV-2 em esgotos que foi criada pela Organização Pan-americana da Saúde [Opas]. Em breve, a organização deve divulgar um protocolo para uniformizar em todos os países do continente a metodologia empregada para esse fim”, diz Rigotto.
Rumo de estudos alterado
Alguns pesquisadores tiveram de mudar o rumo de seus estudos para dar uma contribuição aos esforços de monitoramento da proliferação do novo coronavírus em efluentes. Foi o caso de Rodrigo Bueno, coordenador do curso de engenharia ambiental e urbana da Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André (SP). “Minha área de atuação é o tratamento de esgotos, mas, com pandemia, mudei o enfoque”, conta Bueno. A UFABC lançou editais para pesquisas voltadas ao enfrentamento da covid-19 e o engenheiro submeteu um projeto, ao lado de colegas das áreas de epidemiologia, veterinária, biologia e química, para monitorar o SARS-CoV-2 na rede de esgoto da região do ABC paulista.
A iniciativa foi aprovada, mas surgiu uma primeira dificuldade. Como a estrutura laboratorial da universidade não era adequada para identificar o coronavírus em amostras ambientais, Bueno teve de estabelecer parcerias com colegas da Faculdade de Medicina do ABC e com outros grupos de pesquisa a fim de padronizar a metodologia de coleta e concentração de amostras para a detecção do SARS-CoV-2.
A partir de julho do ano passado, a coleta de amostras passou a ser realizada semanalmente em cinco pontos do ABC paulista. Dois locais são estações de tratamento de esgoto que atendem grandes populações. Os outros três estão em áreas que recebem os dejetos de apenas algumas centenas de pessoas. Segundo Bueno, essa diferença de perfil dos cinco pontos de amostragem diversifica os dados e enriquece os resultados.
Nova colaboração
Bueno pediu financiamento ao MCTI, Ministério da Saúde (MS) e CNPq para colocar de pé uma versão mais robusta do trabalho de monitoramento. Entre mais de 2 mil projetos para enfrentamento da pandemia, o da UFABC foi escolhido como um dos 90 aprovados. A equipe coordenada pelo pesquisador recebeu cerca de R$ 1 milhão, que foi usado para comprar ultrafreezers, centrífugas, kits de biologia molecular e insumos e aprimorar a estrutura laboratorial da UFABC.
No entanto, ainda faltavam recursos para comprar os equipamentos necessários para rodar os exames de PCR em tempo real, que flagram a presença do vírus nas amostras, e adquirir os kits de detecção específicos para o coronavírus. O estabelecimento de uma nova colaboração, agora com a Fundação Parque Tecnológico Itaipu, no Paraná, ajudou a contornar essas limitações. “Em contrapartida à ajuda financeira de Itaipu, a UFABC passou a monitorar o esgoto de Foz do Iguaçu e da usina de Itaipu”, conta Bueno. Hoje, a UFABC conta com um laboratório moderno e completo de biologia molecular voltado para a área ambiental.
* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.