26/11/2022 - 7:34
Por muitos anos considerada uma marca de indivíduos marginalizados e hoje presente em todas as classes sociais, a tatuagem europeia começou a se espalhar pelo mundo a partir do século 15, por intermédio de marinheiros e aventureiros que, durante expedições marítimas, marcavam seus corpos com técnicas improvisadas nos navios e portos onde atracavam.
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No Brasil, apesar do registro de diversos povos indígenas que se tatuavam antes da chegada dos colonizadores, a prática de gravar imagens na pele demorou mais tempo para disseminar-se entre alguns poucos grupos.
Foi no século 19, com navegadores não apenas europeus, mas também norte-americanos e do Oriente Médio. Em comum, havia o fato de adotarem a prática como forma de expressar sentimentos, identidade religiosa ou pertencimento nacional.
Inicialmente objeto de estudo da área de criminalística, a tatuagem passou a ser investigada nas últimas décadas, no Brasil, em outros campos do saber. Pesquisa da historiadora Silvana Jeha realizada com bolsa da Biblioteca Nacional, por exemplo, recompõe a história da tatuagem no meio urbano brasileiro entre o século 19 e 1970, década em que a prática começou a dissociar-se da ideia de marginalidade.
A partir de levantamento em diferentes fontes documentais, o estudo identificou o perfil dos grupos sociais tatuados, buscando compreender o significado da prática para cada um deles.
Levou cinco anos para ser concluído e foi publicado no livro Uma História da Tatuagem no Brasil: Do Século XIX à Década de 1970 (Ed. Veneta, 2019, 352 págs.), com farta iconografia.
“Até a década de 1960, não havia um estabelecimento dedicado à tatuagem. A prática era improvisada em qualquer lugar: em navios e nos cais, nas ruas, em bares, locais de ritos religiosos de matriz africana, quartéis e prisões, com agulhas, mas também com objetos improvisados como espinhos, cacos de vidro e facas”, conta Jeha, que desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Programa de Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O material utilizado para dar cor às imagens também variava bastante. “Os pigmentos envolviam o uso de graxa, anil, fuligem de maço de cigarro e combustão de querosene, anilina preta, carvão vegetal, entre outros”, relata a historiadora.
Amostra abrangente
A pesquisa de Jeha envolveu levantamentos de notícias de jornal da hemeroteca da Biblioteca Nacional, anúncios de fugas de escravos, testemunhos literários e teses médicas sobre o tema, além de documentos do acervo do Museu Penitenciário Paulista, localizado no terreno do extinto Complexo Penitenciário do Carandiru. Esse arquivo é composto por 2,6 mil fotografias de tatuagens de detentos que passaram pelo sistema prisional paulista entre as décadas de 1920 e 1930. As imagens foram organizadas em fichas da Seção de Medicina e Criminologia da Penitenciária do Estado de São Paulo para realizar estudos de perfil de pessoas criminosas e são acompanhadas por entrevistas feitas, à época, com os detentos que portavam as tatuagens.
“Como na época São Paulo foi destino de vários povos estrangeiros e de indivíduos de outras partes do Brasil, o acervo é uma amostra abrangente da tatuagem praticada em diferentes lugares”, relata a historiadora.
Entre 2018 e 2019, pesquisadores britânicos também realizaram estudo do perfil de 58 mil condenados tatuados por meio de técnicas de mineração de dados para compreender o significado histórico da tatuagem. Robert Shoemaker, especialista em história britânica do século 18 na Universidade de Sheffield, e Zoe Alker, do Departamento de Sociologia, Política Social e Criminologia da Universidade de Liverpool, analisaram informações disponíveis na plataforma Digital Panopticon, que contém dados sobre 90 mil condenados pelo tribunal penal central de Old Bailey e que foram presos na Grã-Bretanha e Austrália, entre 1780 e 1925.
Segundo texto publicado pelos autores no site da plataforma, as tatuagens eram descritas pelas autoridades penais como recurso para identificar e rastrear fugitivos ou reincidentes. Uma das conclusões da pesquisa é que elas não representavam símbolos de afiliação criminal, conforme a perspectiva de investigadores sociais e criminologistas como o britânico Henry Mayhew (1812-1887) e o italiano Cesare Lombroso (1835-1909), mas buscavam expressar identidades e sentimentos comuns entre as classes populares.
Fenômeno em ascensão
O estudo procura revelar aspectos da vida de pessoas comuns que não deixaram registros escritos e divide as marcas de pele em quatro categorias: desenhos, palavras ou letras, partes do corpo tatuadas e assuntos abordados – que podem abarcar desde informações sobre identidade nacional até aspectos religiosos. Entre 1821 e 1920, temas navais, símbolos religiosos e sinais de amor, além de nomes e iniciais, eram comuns entre as tatuagens analisadas, feitas principalmente nos braços e cotovelos. Apesar de ser prática frequente entre classes populares, os autores constataram que a tatuagem era um fenômeno em ascensão em diferentes setores sociais da Inglaterra vitoriana, envolvendo, inclusive, membros da realeza.
Jeha afirma que marinheiros foram provavelmente os principais responsáveis por disseminar a cultura da tatuagem em cidades portuárias, por meio de iconografia que envolvia objetos do mundo marítimo, como âncoras e peixes, símbolos amorosos como corações e as iniciais de amantes, além de figuras religiosas. Na virada do século 20, a historiadora identificou que militares de diferentes partes do mundo eram tatuados dentro dos quartéis, onde passavam longos períodos confinados. Tanto marítimos quanto soldados se tatuavam para evitar a morte sem identificação. Jeha relata que, entre os militares, eram comuns desenhos considerados patrióticos, como bandeiras e brasões.
A palavra tatuagem passou a nomear as marcas na pele a partir da publicação dos relatos de viagem do capitão britânico James Cook (1728-1779). Cook comandou expedições científicas da Royal Society de Londres pelo Oceano Pacífico. “As viagens do capitão Cook são um marco porque resultaram nos primeiros registros documentais sobre a prática”, conta a socióloga Beatriz Patriota, doutoranda no Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (Cech-UFSCar) com pesquisa sobre os processos de transformação da tatuagem em objeto artístico.
Segundo Patriota, em 1769, quando publicou as memórias de suas viagens às Ilhas dos Mares do Sul, na Polinésia Francesa, Cook utilizou pela primeira vez a palavra “tatau”, onomatopeia para referir-se ao barulho provocado pela batida dos tatuadores na pele dos que eram tatuados. “Mais tarde, a expressão originou o termo tattoo, em inglês”, conta. “Os marujos eram sujeitos marginais e vistos como estrangeiros em qualquer parte onde estivessem. A prática da tatuagem pode ser vista como uma forma de desenvolver um sentimento de pertencimento entre eles”, analisa Patriota.
Popularização e preconceito
A partir do século 19, o aspecto de marginalidade foi reforçado pela aparição de indivíduos tatuados como atrações em espetáculos de teatros de variedades e parques de diversão, em países da Europa, nos Estados Unidos e mesmo no Brasil. “Esses eventos contribuíram para a popularização da cultura da tatuagem, mas também ajudaram a disseminar preconceitos associados a ela”, diz Patriota. A situação começaria a mudar em 1891, quando o norte-americano Samuel O’Reilly (1854-1909) patenteou a primeira máquina elétrica de tatuagem. A iniciativa, analisa a socióloga, representa um marco no processo de transformação da tatuagem em objeto artístico, simultaneamente à profissionalização da prática, que começou a perder seu caráter improvisado.
Em sua pesquisa, Jeha identificou que desde pelo menos o final do século 19 as páginas policiais dos jornais brasileiros associavam o uso de tatuagem ao universo do crime, reproduzindo relatórios de delegados e médicos-legistas. Segundo a historiadora, a relação entre tatuagem e criminalidade advém da associação com os grupos marginalizados que foram responsáveis por iniciar a disseminação da prática pelo país, entre eles os marinheiros. A associação perdurou por mais de um século.
O psicólogo social Richard de Oliveira, pesquisador do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), observa que as pesquisas nesse campo do saber, ainda hoje, tendem a associar a tatuagem à psicopatologia. “Estudos que abordam a tatuagem como fenômeno estético e social, tal como eu entendo a prática, ainda são franca minoria na área”, afirma.
Novas culturas no século 19
Outro grupo social relacionado com o contexto da tatuagem no Brasil no final do século 19 são os escravizados africanos, que chegaram com marcas de pele. “O meu estudo contemplou análises das tatuagens de pessoas que circulavam pelas cidades brasileiras, o que também é o caso dos escravizados nessa época”, justifica Jeha. Ela investigou 4 mil anúncios de fuga de escravos no acervo de periódicos da Biblioteca Nacional e constatou como descrições de suas tatuagens ou escarificações (marcas de pele produzidas como resultado de cicatrizes que não incorporam pigmento) eram utilizadas para facilitar o reconhecimento de fugitivos.
Nas últimas décadas do século 19, outras culturas de tatuagem chegaram ao Brasil, trazidas por levas de imigrantes provenientes da Europa, do Oriente Médio e do Japão. Na pesquisa realizada no acervo do Museu Penitenciário, Jeha constatou que boa parte dos imigrantes que passaram pelo sistema prisional paulista ingressou tatuada na cadeia, contrariando a expectativa de que todas as marcas teriam sido feitas durante o confinamento. “Havia uma cultura de tatuagem disseminada pelo Oriente Médio. Muitos árabes provenientes da região que hoje estão Síria e Líbano, por exemplo, tinham motivos gráficos e figurativos desenhados em seus corpos, de natureza étnica ou religiosa”, conta.
Segundo ela, motivos religiosos eram tatuados por alguns desses árabes para afirmar sua condição de cristãos, em regiões em que a maioria da população era de muçulmanos. “Diversos escritores brasileiros retrataram a figura do estrangeiro árabe que porta tatuagens, como no conto ‘A Volta do Marido Pródigo’, de Guimarães Rosa [1908-1967], ou no poema ‘Os Turcos’, de Carlos Drummond de Andrade [1902-1987]”, destaca.
Símbolos de rebeldia
Se em 1891 Samuel O’Reilly deu início ao processo de profissionalização da tatuagem, que, décadas depois, acabaria por desembocar em uma busca pelo status de objeto artístico, no Brasil, o marinheiro dinamarquês Knud Gregersen (1928-1983), conhecido como Tatoo Lucky, se tornaria o primeiro tatuador profissional a abrir uma loja e tatuar com máquina elétrica para gravar imagens, nos corpos de marinheiros e de outros frequentadores do porto. “Ele chegou ao país em 1959 e trabalhou principalmente na região portuária de Santos. Representa o elo entre o tempo da marginalidade e a explosão do uso da tatuagem entre todas as camadas da população, a partir dos anos 1970”, analisa Jeha.
De acordo com a historiadora, até a década de 1960 a tatuagem costumava permanecer oculta ou disfarçada, sob a roupa. A partir dos anos 1970, isso começou a mudar, quando várias culturas urbanas como roqueiros, punks, hippies e surfistas adotaram figuras e desenhos como símbolos de rebeldia. “Os norte-americanos denominaram esse fenômeno como ‘renascimento da tatuagem’”, diz.
Hoje os estúdios de tatuagem são regulamentados, obedecem a regras de higiene e pesquisam novas técnicas e tecnologias que permitem aprimorar o trabalho. Esse processo de popularização e profissionalização causou impactos na iconografia, observa João Batista Freitas Cardoso, professor do mestrado profissional em Inovação na Comunicação de Interesse Público da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e pesquisador da cultura pop. Se antes a iconografia estava centrada em elementos clássicos como âncoras e corações, com a popularização passou a englobar elementos da chamada cultura geek, como os personagens de histórias em quadrinhos. Tatuagens de marinheiros do passado também seguem marcando a iconografia atual, mas em releituras caracterizadas pelo estilo de tatuadores contemporâneos.