ONGs alertam que um número crescente de crianças e adolescentes cruzam o Mediterrâneo desacompanhados. Cerca de 3,5 mil morreram ou desapareceram ao tentar realizar a travessia nos últimos dez anos.”Ninguém arriscaria a vida no mar se houvesse uma maneira melhor. Mas não há outra solução. É por isso que arriscamos nossas vidas.” Esta foi a declaração de um adolescente de 15 anos da Guiné, resgatado desacompanhado pela organização alemã de resgate marítimo SOS Humanity.

A ONG sediada em Berlim atua há 10 anos resgatando refugiados que percorrem rotas marítimas. Segundo a organização, cada vez mais crianças e adolescentes embarcam sem os responsáveis na travessia rumo à Europa. A maioria parte de países como Líbia e Tunísia em barcos superlotados. Cerca de um quinto dos resgatados tem menos de 18 anos.

A psicóloga Esther, cujo sobrenome foi preservado pela reportagem, atuou como agente voluntária de saúde mental a bordo do navio de resgate Humanity 1 em novembro e dezembro de 2024. No período, participou do resgate de seis barcos, com um total de 347 pessoas. Entre elas, 43 crianças e adolescentes, a maioria desacompanhada, física e mentalmente debilitados.

“Eles frequentemente ficavam no mar por vários dias e noites sem comida ou bebida, desidratados, enjoados e sofriam queimaduras devido ao contato com água salgada e combustível”, disse. “Infelizmente, muitos também sofrem de doenças de pele, por terem sido mantidos por longos períodos em campos na Líbia. Todos eles estavam emocionalmente exaustos.”

Perigo em campos líbios

A situação nos campos de refugiados líbios tem sido cada vez mais perigosa para os jovens. A Líbia recebe refugiados que buscam um caminho à Europa após escaparem de conflitos armados e perseguições em outros países, como a Guerra no Sudão.

O país do norte da África, porém, é duramente acusado de graves violações dos direitos humanos e de detenções ilegais.

“Os jovens me contaram sobre formas graves de violência sexual, tortura, trabalho infantil, perda de entes queridos e até casos de tráfico de mulheres. Em alguns casos, mostraram cicatrizes, fotos e vídeos dos campos líbios que mostram como eram amarrados e torturados”, conta Esther.

A União Europeia mantém acordos de cooperação técnica e financeira com a Líbia com foco em impedir a partida de refugiados à Europa, além de apoiar interceptações no mar e o retorno ao país de origem. O objetivo é conter a migração através do Mediterrâneo.

Contudo, a política europeia vem sendo criticada até mesmo por membros do próprio bloco. A UE é acusada de criar, na Líbia, um cenário de acolhimento permanente de refugiados, e não de transição, além de financiar indiretamente a existência dos campos onde ocorreria violações de direitos humanos.

Milhares mortos na rota

Os refugiados que conseguem escapar destes campos enfrentam um perigo ainda maior durante a travessia. Segundo estimativas de abril de 2025 da organização de ajuda à infância Unicef aproximadamente 3.500 crianças morreram ou desapareceram nos últimos 10 anos enquanto tentavam chegar à Itália pela rota do Mediterrâneo Central.

Isso corresponde a uma criança morta ou desaparecida por dia na última década. A SOS Humanity pede, por isso, o fim imediato da cooperação da União Europeia com a Líbia e a Tunísia.

“A proporção de menores entre os que fogem tem aumentado constantemente nos últimos 10 anos. De todos os que chegam à Itália, cerca de um quinto são menores. Em nossos resgates, a média é ainda maior que um terço”, diz o diretor geral da SOS Humanity, Till Rummenhohl. “Recentemente, tivemos um barco inteiro com 120 menores a bordo. Adolescentes em pânico, viajando sozinhos, pularam na água por medo da guarda costeira da Líbia.”

Dissolução da Usaid tem consequências dramáticas

O problema do número crescente de crianças e jovens que embarcam na perigosa jornada para a Europa pode se tornar ainda mais grave no futuro, alerta Lanna Idriss, CEO da alemã Aldeias Infantis SOS. Ela se refere especialmente à decisão do governo do presidente dos EUA, Donald Trump, que dissolveu a agência de ajuda ao desenvolvimento Usaid, o que pode ter consequências dramáticas.

A revista especializada em medicina The Lancet calculou que os cortes da Usaid podem resultar em mais de 14 milhões de mortes adicionais nos próximos cinco anos, incluindo cinco milhões de crianças menores de cinco anos. A Alemanha também cortou sua ajuda ao desenvolvimento em quase um bilhão de euros.

“Isso nos coloca em um círculo vicioso que levará mais crianças a seguirem esse caminho”, diz Idriss, citando a Somália como exemplo. “O país dependia 80% da ajuda do Usaid. Enquanto alcançamos quatro milhões e meio de crianças e jovens na Somália no ano passado, este ano foram apenas 1,3 milhão. Por quê? Porque os campos destinados a cuidar dessas crianças e jovens estão vazios desde o meio do ano.”

Convenção da ONU prevê proteção especial

“Crianças e jovens devem ter prioridade de proteção e evacuação durante resgates no mar”, lembrou a advogada, Vera Magali Keller, referindo-se à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, com a qual todos os países estão comprometidos. A advogada dirige um escritório em Berlim especializado em apoiar organizações humanitárias, incluindo organizações de resgate marítimo.

“Em vários países europeus, existem perspectivas especiais de residência, direitos à proteção e direitos à reunificação familiar. Na Itália, por exemplo, isso geralmente se aplica até a criança atingir a idade adulta. Como regra geral, crianças e jovens devem ser alojados separadamente dos adultos e receber proteção especial; a privação de liberdade deve ser evitada sempre que possível”, afirma Keller.

Governo alemão suspende apoio a resgates

A SOS Humanity anunciou que enviará outro navio de resgate ao Mediterrâneo em 2026, que buscará principalmente barcos de refugiados e monitorará violações de direitos humanos na costa tunisiana. Para isso, a organização depende de doações, já que o governo alemão cortou seu apoio financeiro anual a resgates civis no mar.

Este é um dos motivos pelos quais Keller está pessimista quanto ao futuro. “Receio que a criminalização e a repressão ao resgate marítimo civil e à solidariedade com as pessoas em fuga se intensifiquem sob o atual governo alemão. Da mesma forma, os já desastrosos padrões de proteção e acolhimento de refugiados na Europa se deteriorarão ainda mais.”

Colaborou Gustavo Queiroz