11/12/2025 - 12:06
Facções ampliam exploração de infraestrutura, como redes elétrica e de internet, extorquindo moradores e até impedindo empresas regulares de atuar em certas regiões.A expansão do crime organizado em mercados ilegais é bastante documentada, mas, com maiores domínios territoriais, os grupos passaram a explorar mais serviços essenciais. Energia e internet estão na mira dos criminosos, que obrigam moradores a pagar pela sua oferta e até impedem que empresas regulares atuem nestas regiões. Com uma rotina que depende cada vez mais destas estruturas, o poder nas mãos do crime representa uma série de riscos.
“Os grupos aproveitam a ausência de fiscalização e controle, assim ampliam a presença em negócios muito lucrativos”, afirma o pesquisador Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Em uma comunidade, quantas pessoas consumirão drogas? E quantas usarão internet?”, compara, em uma lógica que explica a atratividade destes serviços cada vez mais onipresentes. Em 2024, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que 74,9 milhões de domicílios no país possuíam acesso à internet, o que representa 93,6% do total.
“Quem começou a operar estes serviços de formas mais sistemática foram as milícias. Recentemente, algumas facções tem entrado com relevância, especialmente no ramo de internet”, pontua Hirata.
Muitas vezes, os grupos não começam propriamente oferecendo o serviço, mas cobrando por proteção para que as empresas do setor operem em regiões sob seu domínio. Com o passar do tempo, certas facções acabaram preferindo tomar conta do negócio por completo, se apropriando das estruturas formais. “Há uma tendência monopolística. Os moradores destes lugares normalmente não têm opções de buscar outras empresas”, explica Hirata.
CVNet: a “internet do Comando Vermelho”
A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro aponta que atualmente mais de 80% dos provedores de internet em comunidades da cidade estão ligados a facções. O cenário levou à consolidação do que ficou conhecido como “CVnet”, denominação para os serviços de conexão oferecidos pelo Comando Vermelho (CV).
A estratégia foi a mesma utilizada pelo grupo no Ceará, estado que em março deste ano enfrentou consequências graves da expansão criminosa na infraestrutura. Provedoras oficiais tiveram sua estrutura atacada, incluindo rompimento de fios e até carros de prestadores de serviços queimados.
Algumas empresas, como a GPX Telecom, chegaram a fechar permanentemente por não conseguirem lidar com os danos. Outras, caso da Brisanet, passaram a operar com esquemas reforçados de segurança. Em Caridade, no interior do Ceará, 90% dos consumidores ficaram dias sem acesso à internet.
“As facções foram encontrando oportunidades em uma atividade legal que foi se popularizando. Para muitas pessoas, foi interessante”, comenta Luiz Fábio Paiva. Professor da Universidade Federal do Ceará e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV).
Gatonet
Ele lembra que a oferta ilegal de internet barata e diversos serviços de streaming, conhecidos popularmente como “gatonet”, foram bem vistas, chegando a atrair até mesmo bairros de classe média de Fortaleza. Em alguns casos, o serviço mensal de acesso à internet custava apenas R$ 20. “Houve a ideia de que era legítimo este tipo de serviço, o que ajudou para que se disseminasse”, pontua.
No entanto, ele ressalta que a atuação contribuiu para o avanço da exploração territorial em outros ramos no Ceará. Atualmente, a extorsão de comerciantes vem sendo uma fonte de renda comum das facções no estado, e casos de moradores expulsos de suas casas para que os criminosos aluguem as habitações por conta própria vem sendo recorrentes.
Além disso, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aponta que, como em qualquer área da economia, a atuação criminosa no setor de telecomunicações pode gerar riscos à integridade das redes, de equipamentos e de funcionários das prestadoras. Desta forma, empresas podem evitar investimentos em determinadas áreas, o que pode comprometer a expansão da conectividade e prejudicar a população local.
Custo para todos
No Rio de Janeiro, a situação é emblemática no caso da eletricidade. Segundo a prestadora de serviços de energia no estado, a Light, a cada 100 clientes regulares atendidos, 40 furtam o serviço. Em certas localidades, a estimativa é de mais de 80% da população estejam consumindo energia de forma irregular.
O prejuízo anual para a Light é de aproximadamente R$ 1,3 bilhão. “Como o setor elétrico funciona em modelo regulado, parte dessas perdas é absorvida pela distribuidora e parte entra nos mecanismos tarifários definidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Assim, todos os consumidores acabam afetados de alguma forma”, afirma a companhia.
O diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Sandoval Feitosa, avalia que, no Rio de Janeiro, as distribuidoras de energia têm um ônus muito alto, pois “é muito difícil prestar o serviço em uma região conflagrada pelo crime organizado”.
As ligações clandestinas sobrecarregam a rede elétrica e, em consequência, superaquecem os transformadores, o que aumenta o risco de incêndios, acidentes e de falta de energia, afetando toda a comunidade. Entre dezembro de 2024 e abril de 2025, 1.320 transformadores queimaram por causa da sobrecarga gerada pelo furto, impactando cerca de 400 mil clientes no Rio de Janeiro, segundo a Light.
Hirata lembra que os chamados “gatos” são comuns em uma série de processos de urbanização pelo mundo, mas a presença do crime dá outro contexto para o caso fluminense. “O que é mais grave é quando os criminosos estão envolvidos, o que acaba aprofundando o problema, especialmente em lugares de difícil acesso e quando operadores são ameaçados”, afirma.
Luz no fim do túnel?
No caso da Anatel, há uma busca por maior regularização dos pequenos prestadores de serviços de internet, algo que disparou no Brasil nos últimos anos. “A exigência de outorga passou a ser um eixo central do Plano de Ação”, aponta. Uma resolução da associação neste ano determinou a suspensão de uma regra de dispensa de outorga – ou seja, da licença da Anatel – , impondo às empresas que atuavam sob esse regime a obrigação de obter autorização formal.
O regime sob o qual vários pequenos operadores vinham sendo dispensados de outorga é visto como uma facilidade para a atuação de grupos ilegais neste setor. A expectativa é de que
centenas de pequenos provedores sejam obrigados a se regularizar, combatendo aqueles que operem de forma ilegal.
Dados da Anatel mostram que em todo o estado do Rio de Janeiro constam 1.734 empresas prestadoras de serviços de internet, sendo 822 com outorga e 912 com dispensa de outorga. Somente na capital fluminense, há 638 prestadoras de serviço de internet, 305 com outorga e 333 com dispensa de outorga.
Além disso, a Anatel destaca medidas complementares, como a notificação de provedores de infraestrutura para interromper fornecimento a empresas não autorizadas e a exigência de atualização cadastral e envio de informações setoriais.
Já a Light aponta para o programa Light Controle, cuja ideia é criar um modelo de cobrança mais previsível e acessível, que ajude as famílias a manterem suas contas em dia, calculadas de acordo com a capacidade de pagamento de cada uma.
Na visão de Paiva, é preciso pensar o crime por todas “as dimensões que o levem a acontecer, incluindo a demanda social”. Neste caso, a busca pelos serviços oferecidos de forma irregular pode prosseguir, fazendo com que eles voltem a ser ofertados apesar da repressão. “Os agentes voltam assim que podem, são pessoas com conhecimento. É necessário tomar ações para a dissuasão”, conclui.
