“Trabalhamos para cuidar não só de nós, mas também de vocês. Qual é o pagamento? É morrer”, acusa antropólogo indígena. Atenções se voltam para sabedoria dos indígenas, mas seus direitos continuam ameaçados.Engana-se quem pensa que só haja indígenas no continente americano. Na definição contemporânea adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) são considerados indígenas os povos, comunidades e nações que “contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica.”

Em outras palavras, ser indígena é uma questão de ser diferente de quem o colonizou, mantendo e conservando essa diversidade. Diante da complexidade e importância da questão, a ONU instituiu há 30 anos o 9 de agosto como Dia Internacional dos Povos Indígenas, buscando trazer visibilidade e provocar debates a respeito da importância dessas populações.

Segundo a organização, hoje há 476 milhões de indígenas distribuídos por 90 países, ocupando 28% das terras. Mas esses números podem variar conforme a metodologia adotada, a legislação de cada país e, evidentemente, a organização que produz tais levantamentos.

Dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) alertam para o fato de que, embora os indígenas representem apenas 6,2% dos habitantes do planeta, eles são 19% dos que vivem em extrema pobreza.

Em termos de diversidade, essas populações representam um conjunto enorme de saberes: são 5 mil diferentes culturas indígenas ao redor do planeta, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Mais integração, mas faltam direitos básicos

Ativistas e acadêmicos concordam que, embora ainda não esteja no patamar considerado ideal, a inserção social e a visibilidade dos povos originários aumentaram muito nas últimas décadas. “Há muito mais conscientização, claro. E diversidade nas áreas social, acadêmica e política”, afirma a psicoterapeuta Leslie Korn, diretora de pesquisa da organização americana Center for World Indigenous Studies.

A pesquisadora e professora na Universidade de Michigan Susan Najita acredita que “datas como esta têm lentamente trazido uma consciência mais ampla sobre as experiências de injustiça” compartilhadas pelos povos indígenas ao redor do mundo: “Muito ainda precisa acontecer, e o reconhecimento significativo dos direitos soberanos dos povos indígenas seria um começo.”

“Os problemas permanecem”, enfatiza Korn: muitos povos indígenas têm seus territórios ameaçados e não conseguem autonomia para conduzi-los da maneira como lhes parece mais conveniente. A organização que ela dirige defende que essas populações tenham suas próprias leis “para negociar com os Estados como iguais”.

Para o antropólogo Francisco Apurinã, pesquisador da Universidade de Helsinque e presidente do Instituto Pupỹkary, os avanços das últimas décadas podem ser vistos como resultado das mudanças na sociedade. Ele lembra que a representatividade política dos povos indígenas também aumentou: “Temos hoje [no Brasil] um Ministério dos Povos Indígenas, isso nunca houve antes. Embora seja bastante incipiente do ponto de vista de estrutura e operacionalização e não consiga chegar a todas as terras indígenas, é uma ferramenta.”

Ele enfatiza que a necessidade de demarcação dos territórios é ainda o principal problema enfrentado. Mas também lembra da necessidade de os indígenas serem incluídos plenamente em serviços públicos de educação e saúde. “Vemos gente morrendo por falta de transporte de qualidade para levar esse indígena da aldeia até o posto de saúde. Ainda falta muito para que possamos ser respeitados da forma que merecemos.”

Em tempos de aquecimento global

A visibilidade e a valorização dos povos indígenas na contemporaneidade é também um efeito colateral positivo da maior tragédia da época atual: as mudanças climáticas. Especialistas e representantes de populações originárias concordam que a maneira como eles lidam com o meio ambiente se tornou uma luz no fim do túnel contra o colapso ambiental.

“A data se torna mais significativa porque a causa indígena tem ganhado cada vez mais importância, à medida que as mudanças climáticas se tornam mais perceptíveis e presentes na vida das pessoas”, comenta o antropólogo Moreira, referindo-se ao 9 de agosto.

De acordo com levantamento do Banco Mundial, 80% da biodiversidade remanescente no mundo contemporâneo está conservada em territórios indígenas. “E a relação das populações indígenas com o meio ambiente é constituinte de sua condição”, lembra Moreira.

“Em nossa vida, somos ameaçados e mortos, mas trabalhamos arduamente em nossos territórios para cuidar não somente de nós, mas também de vocês, da classe não-indígena”, diz Apurinã. “E sabe qual é a resposta, o pagamento? É morrer. Somos insultados, ameaçados, expulsos de nossos territórios, porque a sociedade não consegue entender nossa forma de viver e estar no mundo.”

Apurinã acredita que agora, com o agravamento da crise climática, “não tem jeito”: todos terão de “aprender com os povos indígenas como se relacionar com a terra e os seres vivos […] para uma vida melhor no mundo.”

Representação política fortalecida

Coordenador da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), o pedagogo Alberto Terena comenta que “há avanços e retrocessos” quando se pensa na “educação escolar indígena”, na demarcação de territórios e também no acesso à saúde pública. “Vamos continuar lutando”, frisa.

“Uma coisa que mudou bastante é que a presença política das populações indígenas está cada vez mais forte”, avalia o antropólogo Tiago Moreira, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA). “Mesmo sendo ainda uma fração pequena, eles têm uma força política bastante grande, que cresceu muito e é capaz de influenciar a sociedade e fazer frente às ameaças aos seus direitos conquistados ao longo da história.” Outro aspecto que ele ressalta é a valorização cada vez maior “dos conhecimentos indígenas”, inclusive por parte de pesquisadores universitários.

Fundador do Instituto Arapoty, o escritor e ambientalista Kaká Werá reconhece que “nos últimos 30 anos, a abordagem social, acadêmica e política em relação aos povos indígenas mudou significativamente”.

“Houve avanços no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas em diversas constituições nacionais e através de tratados internacionais”, enumera. “A inclusão de representantes indígenas em processos políticos e decisões governamentais aumentou, embora ainda haja desafios significativos.”

“A produção acadêmica sobre povos indígenas cresceu, com um enfoque maior em abordagens participativas e colaborativas, onde os próprios indígenas são os protagonistas das pesquisas”, analisa Werá. “O fortalecimento de movimentos sociais e ONGs que defendem os direitos indígenas tem sido crucial para a promoção de mudanças legislativas e práticas de proteção.”

Reconhecimento para além das fronteiras nacionais

O historiador Carlos Trubiliano, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e assistente técnico na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), vê melhorias nas abordagens social, acadêmica e política nas últimas décadas: “Politicamente, houve avanços no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. Diversos países, incluindo o Brasil, implementaram legislações específicas para proteger terras indígenas e reconhecer seus direitos culturais e sociais.”

Em 2007, a ONU publicou a Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas: “um marco importante”, avalia Trubiliano. “O texto é moderno e reflete as reivindicações dos povos indígenas em todo o mundo. A Declaração representou melhorias nas relações entre os povos indígenas e os Estados nacionais, estabelecendo instrumentos internacionais e parâmetros mínimos para a implementação de legislações. A declaração inclui princípios como igualdade de direitos, proibição de discriminação, direito à autodeterminação e a necessidade de consentimento e acordo mútuo como referência para todo o relacionamento entre povos indígenas e Estados.”

“Socialmente, os povos indígenas passaram a exercer maior visibilidade e ter uma atuação mais ativa na sociedade. Os meios de comunicação, e posteriormente as redes sociais, proporcionaram espaços para que as questões indígenas fossem projetadas”, observa o historiador.

Ele cita como exemplos os nomes do cacique Raoni Metuktire, respeitado internacionalmente, e do escritor Ailton Krenak, além das políticas Joênia Wapichana e Sonia Gajajara. Estes “passaram a compartilhar suas histórias, plataformas de luta e conquistas, aumentando a conscientização, não apenas da população brasileira, mas global, sobre suas causas.”