03/07/2020 - 17:17
Professora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás (UFG) e especialista em epidemiologia de doenças infecciosas, a médica infectologista Cristiana Toscano, de 48 anos, foi indicada no início de junho para integrar o Grupo de Trabalho de Vacinas para Covid-19 do Grupo Estratégico Internacional de Experts em Vacina e Vacinação (Sage) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa equipe é responsável por revisar os estudos em andamento de candidatas a vacinas para o novo coronavírus, bem como orientar estratégias de vacinação. A comissão é formada por 13 especialistas e Toscano é a única representante brasileira.
Como resultado do esforço inédito global para que uma vacina seja aprovada e esteja pronta para uso até o fim do primeiro semestre de 2021, várias etapas do processo estão sendo aceleradas. “Na OMS, já estamos discutindo estratégias e prioridades de vacinação. Isso normalmente seria iniciado após uma ou mais vacinas estarem disponíveis e registradas”, afirma Toscano, que tem longa carreira em organismos internacionais na área da saúde.
Nesta entrevista a Pesquisa Fapesp feita em etapas, ela conta o que vem sendo feito para promover o acesso equitativo global à vacina, evitando que se repita o que ocorreu durante a epidemia de H1N1, em 2009, quando países em desenvolvimento receberam o imunizante pelo menos seis meses depois das nações desenvolvidas.
Raramente uma vacina é feita em menos de 10 anos. Em quanto tempo a OMS estima que teremos uma segura e eficaz contra a covid-19?
Vivemos um momento sem precedentes na história no tocante à velocidade e à colaboração internacional e intersetorial para apoiar e promover o desenvolvimento rápido e articulado de vacinas contra a covid-19, bem como sua produção, distribuição e acesso em nível global. Imaginando que algumas das vacinas candidatas hoje avaliadas em humanos sejam aprovadas em todas as etapas das pesquisas clínicas, é possível pensar, de uma forma otimista, em um cenário de 12 a 18 meses desde o início dos estudos das vacinas candidatas. Isso seria por volta de março a agosto de 2021.
Quais as dificuldades de fazer esse desenvolvimento em tão pouco tempo?
Há inúmeros desafios. É preciso realizar os estudos pré-clínicos, que preveem ensaios in vitro e em modelos animais, e os clínicos, que fazem avaliação de segurança, imunogenicidade e eficácia em humanos. Isso leva tempo. Há, contudo, processos que podem ser facilitados. Algumas etapas podem ocorrer de forma paralela em vez de sequencial, mas precisam ser cumpridas para que se garanta a segurança e a eficácia da vacina. O fato de termos tantos grupos trabalhando em candidatas a vacina e utilizando tecnologias distintas por si só já é maravilhoso. Claro que há mais chances de termos uma vacina eficaz com cerca de 140 candidatas sendo pesquisadas, de acordo com números recentes da OMS. Historicamente, dois terços das candidatas nunca chegam ao final de todas as etapas.
Então, é possível acelerar etapas?
Sim. Quando as primeiras vacinas candidatas iniciaram os estudos de fase 2 em humanos, o grupo de trabalho para vacinas covid-19 do Sage, do qual faço parte, foi montado. Já estamos discutindo estratégias e prioridades de vacinação, avaliando os estudos em andamento e considerando as candidatas mais avançadas. Isso normalmente seria iniciado após uma ou mais vacinas estarem disponíveis e registradas para uso. Além disso, a aceleração no desenvolvimento envolve necessariamente financiamento para que os grupos de pesquisa avancem rapidamente e em paralelo. É preciso incentivo ao setor produtivo para que ele tome riscos maiores, como produzir em escala vacinas para uso em ensaios clínicos de fase 3 quando essas ainda estão em estudos de fase 1 ou 2. E também mais adiante, quando, ainda durante o andamento dos ensaios clínicos de fase 3, já se estimule a ampliação da produção para uso em larga escala, assumindo que o resultado do estudo será positivo e que a vacina será licenciada. Finalmente, requer coalizões e colaborações globais para promover todo esse processo de maneira articulada e rápida.
Quais candidatas a vacina se encontram em estágio mais avançado?
Ao todo, temos hoje [22 de junho] mapeadas pela OMS 142 candidatas em desenvolvimento. Dessas, 129 se encontram em estudos pré-clínicos, sendo avaliadas in vitro e em modelos animais, enquanto 13 estão sendo testadas em humanos, em ensaios clínicos. Destas, temos uma vacina candidata já entrando em ensaio clínico randomizado de fase 3, a vacina da Universidade de Oxford e do laboratório AstraZeneca, ambos britânicos, que usa tecnologia de vetores virais não replicantes, e três candidatas em fase final de ensaios clínicos de fase 2: a da farmacêutica norte-americana Moderna, com o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas [Niaid] dos Institutos Nacionais de Saúde [NIH] dos Estados Unidos, que utiliza a tecnologia de RNA; a vacina da Casino Biological Inc., em parceria com o Instituto de Biotecnologia de Beijing, que também emprega vetores virais não replicantes; e a vacina da chinesa Sinovac, que usa tecnologia convencional de vírus inativados.
O que se pode dizer da vacina de Oxford?
Com resultados promissores nas fases 1 e 2, ela iniciou estudos clínicos em humanos em abril. Agora está começando o ensaio de fase 3, no qual serão avaliados 10 mil participantes em todo o mundo, incluindo 2 mil no Brasil. É uma das várias parcerias público-privadas em desenvolvimento. A tecnologia utilizada é a de vetores virais, no qual genes selecionados do SARS-CoV-2 [DNA blueprint] são inseridos em um vírus geneticamente modificado não replicante – que, portanto, não consegue se multiplicar dentro de uma célula humana. Esse vírus age como um vetor – por isso, é denominado vetor viral –, levando os genes selecionados para dentro da célula humana, onde passa a produzir proteínas específicas do coronavírus que estimulam a produção de anticorpos que irão proteger contra o SARS-CoV-2.
No lugar de tantas candidatas correndo em paralelo, não seria mais lógico que o mundo unisse esforços para desenvolver uma única vacina?
Hoje há uma colaboração intersetorial internacional importante, e provavelmente por esse motivo temos hoje tantas vacinas candidatas em estudos pré-clínicos e clínicos. Iniciativas como o Cepi [Coalition for Epidemic Preparedness and Innovations], uma aliança internacional criada em 2017 para coordenar esforços para o desenvolvimento de vacinas para epidemias, e a Activ [Accelerating Covid-19 Therapeutic Interventions and Vaccines], nos Estados Unidos, são exemplos desse esforço. Já no tocante ao acesso às vacinas, vale destacar a iniciativa ACT [Access to Covid-19 Tools] Accelerator, coordenada pela OMS e com participação de entidades internacionais e filantrópicas, governos e produtores de vacinas. Seu objetivo é promover o acesso equitativo global. Em junho, durante a Cúpula Global de Vacinas, no Reino Unido, levantou-se um fundo de US$ 8,8 bilhões para garantir aos países em desenvolvimento o acesso às vacinas para covid-19.
A colaboração internacional pode, portanto, acelerar o processo?
O desenvolvimento de vacinas é um processo trabalhoso, demorado, que envolve pesquisa básica, pesquisa clínica, tecnologia, capacidade de produção e muito investimento. Por esse motivo, a colaboração estratégica de diversos setores é fundamental. Além disso, estamos falando de uma demanda de bilhões de doses de vacina. Se tivermos mais de uma vacina aprovada em todas as etapas dos ensaios clínicos e que se mostre segura e eficaz, usando tecnologias distintas, haverá maior possibilidade de garantir uma oferta suficiente para a demanda global.
Distribuir a vacina, de forma que chegue rapidamente a todo o mundo, parece ser outro grande desafio. A OMS tem alguma orientação quanto a isso?
A disponibilidade da vacina para todo o mundo é prioridade, e a iniciativa ACT indica que é uma questão que precisa ser abordada. Até porque nenhum país é uma bolha. Não vivemos em um mundo em que proteger a sua população seja suficiente, muito menos aceitável do ponto de vista ético e humanitário. A humanidade inteira precisa estar protegida. E, se tivermos a tecnologia necessária para isso, torná-la acessível a todos é primordial.
Países periféricos podem vir a receber a vacina tardiamente?
Isso ocorreu durante a última pandemia de influenza causada pelo vírus H1N1, em 2009, quando países menos desenvolvidos receberam a vacina seis meses após as nações desenvolvidas. Esperamos que isso não aconteça agora. Além das iniciativas globais já citadas, uma estratégia que não é recente são os acordos de transferência de tecnologia entre instituições. Por meio deles, o fornecimento da vacina pela detentora da patente é garantido por um contrato de compra atrelado à transferência da tecnologia de produção do imunizante para uma instituição produtora, geralmente de um país em desenvolvimento. Esses acordos, quase sempre firmados após o término dos estudos clínicos de fase 3 e aprovação da vacina, estão ocorrendo antecipadamente, considerando uma “aposta” em uma vacina, antes mesmo do início dos estudos de fase 3. É o caso do acordo entre a Universidade de Oxford e o Serum Institute da Índia, e a parceria entre a chinesa Sinovac e o Instituto Butantan. Com a perspectiva estratégica de autossuficiência na produção de imunobiológicos, o Brasil tem priorizado esse tipo de parceria para vacinas com tecnologias inovadoras.
Como avalia a participação brasileira na corrida por uma vacina?
Temos cientistas e instituições de pesquisa de qualidade e destaque internacional. Apesar de adversidades relativas a financiamento, infraestrutura, políticas públicas de apoio à ciência, entre outros, a capacidade de produção de conhecimento e tecnologia do país é impressionante. Há pelo menos três grupos envolvidos com desenvolvimento de vacinas para a covid-19, incluindo a USP [Universidade de São Paulo], que trabalha numa vacina com a tecnologia de VLP [partículas semelhantes a vírus], e a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] MG, que, em parceria com o Instituto Butantan, emprega a tecnologia de vetores virais, ambos em estudos pré-clínicos. Além disso, temos vários grupos com experiência em ensaios clínicos de fase 3 para vacinas e medicamentos. O Brasil está envolvido em duas das quatro vacinas candidatas que iniciam ensaios clínicos de fase 3, a de Oxford e a da Sinovac. O que ainda falta aqui é ambiente, cultura e estímulo para fomentar uma colaboração intersetorial mais ampla, incluindo financiamento por filantropias e parcerias público-privadas.
Que rotas tecnológicas têm se mostrado mais promissoras?
Dentre as dez candidatas em ensaios clínicos em humanos, temos vacinas usando as principais tecnologias: vírus inativados, vetores virais, subunidades proteicas e ácidos nucleicos RNA ou DNA. Todas são promissoras e têm aspectos positivos e negativos. As vacinas de vetores virais provavelmente poderão induzir imunidade com apenas uma dose; no entanto, imunidade preexistente ao vírus utilizado como vetor pode interferir na sua eficácia. Vários grupos estão desenvolvendo vacinas de subunidades proteicas, uma tecnologia empregada para outros imunizantes já licenciados. Porém, requerem adjuvantes e em geral mais de uma dose para gerar imunidade, além de ter um processo de produção complexo e caro. A tecnologia de vírus inativados, por sua vez, já é usada desde a década de 1950. Como requer cultivo do vírus em larga escala, exige laboratórios especializados de biossegurança e o custo de produção pode ser alto. Por outro lado, essas três tecnologias [vírus inativados, subunidades proteicas e vetores virais] têm escala de produção elevada globalmente por já serem utilizadas em larga escala para a produção de outros imunizantes.
Qual plataforma é mais inovadora?
A que emprega ácidos nucleicos, tanto que nenhuma vacina atualmente licenciada e aplicada em larga escala em humanos utiliza essa tecnologia. Caso uma vacina que use essa tecnologia dê certo contra a covid-19, será um grande avanço tecnológico na vacinologia e permitirá muitos progressos na área. De fácil produção, seria uma nova plataforma tecnológica a ser considerada para várias outras vacinas contra doenças infecciosas no futuro.