A crônica é para muitos a porta de entrada para a leitura. Gênero vem perdendo espaços nos jornais, mas é aberto a adaptações. DW conversou com cronistas de diferentes gerações.Certa vez, uma repórter de TV perguntou a Luis Fernando Verissimo: “Como nasce uma crônica?”. “Qualquer coisa pode virar uma crônica”, respondeu ele. E deu alguns exemplos: “Uma frase, um cheiro, um incidente…”. Terminada a entrevista, a repórter tirou um livro da bolsa, e o entregou ao entrevistado. Antes, porém, rabiscou um bilhetinho: “Sua braguilha está aberta”.

Na mesma hora, Verissimo sorriu, virou-se para a jornalista e reiterou: “Qualquer coisa pode virar uma crônica. Até uma braguilha aberta”. E, realmente, virou: Nasce Uma Crônica foi publicada no jornal Correio Popular, em 1º de maio de 2003.

Noutra ocasião, Ignácio de Loyola Brandão foi sabatinado por uma turma de estudantes. Lá pelas tantas, alguém comentou: “O senhor tem 88 anos e não tem voz de velho”. “Voz de velho?”, repetiu o autor. “Voz frágil, hesitante”, explicou o aluno. “Falou por duas horas e está firme. Qual o segredo?”

“Sou ansioso, como bem, bebo vinho; não tenho disciplina nenhuma”, respondeu. “E como chegou a esta idade?”, indagou outro. “Ora, não morri”, respondeu. E todos caíram na risada. Sim, aquele bate-papo também foi parar nos jornais, em Como Nasce uma Crônica, na edição de 3 de novembro de 2024 do jornal O Estado de S. Paulo.

Aos 89 anos, Ignácio de Loyola Brandão é um dos mais experientes cronistas brasileiros. Seus textos estão em incontáveis coleções do gênero, como Crônicas para Ler na Escola, da Editora Objetiva, e Crônicas para Jovens, da Global Editora. “A crônica sobrevive porque evolui. Ou ela mudava, ou perdia o sentido”, avalia o autor. “Minha crônica tem algo de memorialista. Abordo muito o cotidiano. Às vezes, resvalo para o realismo mágico. Creio que estou fadado a desaparecer”, admite o autor de Sonhando com o Demônio (1998) e O Homem que Odiava Segunda-Feira (1999).

Cinco das Cem Melhores Crônicas Brasileiras (2007) são de Verissimo e Loyola. Ed Mort e o Anjo Barroco (1983), Grande Edgar (2001), Homem Que É Homem (2001) e Sexo na Cabeça (2002) são do gaúcho de Porto Alegre. Já Calcinhas Secretas (2003) é do paulista de Araraquara.

Quem também marca presença na antologia organizada por Joaquim Ferreira dos Santos é Mario Prata: Minhas Bunda (2001). “Por que escrevo? Ora, para pagar boletos”, diverte-se o mineiro de Uberaba, aos 79 anos, que calcula já ter escrito mais de 3 mil crônicas. “É a minha profissão. Trabalho com um puta prazer. Não sei fazer mais nada da vida. Nem fritar ovos eu sei.”

“Patinho feio”

Recentemente, dois novos livros de crônicas chegaram às livrarias: Viagem no País da Crônica, escrito por Humberto Werneck, e Um Século em Cem Crônicas, organizado por Maria Amélia Mello, com a colaboração de Cláudia Mesquita. No primeiro deles, o ex-editor do Portal da Crônica Brasileira explica que o gênero nasceu na França e chegou ao Brasil em 1852 trazido pelo poeta carioca Francisco Otaviano. Diz também que foi Machado de Assis quem popularizou o termo “crônica” na década de 1870 e Rubem Braga quem o abrasileirou na década de 1930. É de Braga, aliás, uma de suas definições mais famosas: “Se não é aguda, é crônica…”.

“Não creio que ‘o patinho feio’ vá se transformar um dia em cisne. Pensando bem, é melhor que ele jamais vire cisne – ave um tanto enfatuada, convenhamos. O que precisa acontecer com a crônica é que se generalize a constatação de que ela constitui um gênero autônomo, e não um subgênero, como ainda há quem avalie”, destaca Werneck. “Estamos a caminho desse reconhecimento, e um sinal disso é que, nos concursos literários, a crônica já merece categoria própria, quando até recentemente, como no Prêmio Jabuti, ela, no máximo, dividia espaço com o conto, o que não tem nada a ver.”

Das 77 crônicas do livro, muitas fazem referência a Rubem Braga, definido por Werneck como “o maior de todos”. Em Original Até no Plágio, fala da vez em que Braga, “à míngua de inspiração”, pergunta a Fernando Sabino se ele não tem alguma crônica “usada” que pudesse lhe ceder. O mineiro, então, oferece ao capixaba a história de uma sopa servida a preços irrisórios num refeitório popular do Centro do Rio de Janeiro. Tempos depois, a situação se inverte: e o que Braga faz? Oferece a Sabino a mesmíssima crônica! “Fernando ensaiou reclamação, mas, sem alternativa, engoliu a requentada sopa”, ri Werneck.

Braga e Sabino, aliás, são presenças obrigatórias em qualquer antologia, como Os Sabiás da Crônica (2021), da Autêntica. Nela, estão ao lado de outros gigantes, como Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto e José Carlos Oliveira. O livro, organizado por Augusto Massi, reúne 90 crônicas, 15 de cada autor. “Crônica é conversa de taxista: de repente, sem nenhuma intimidade, o sujeito se abre. Tem o timing da corrida: os segredos de uma vida são revelados entre você abrir a porta e descer no seu local de destino”, explica o doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP).

A concepção de Os Sabiás da Crônica é de Maria Amélia Mello, responsável pela seleção e organização de Um Século em Cem Crônicas. Se naquela antologia os seis autores pertenciam à Editora Sabiá; nesta, os 32 cronistas passaram pela redação do jornal carioca O Globo. Vão desde nomes clássicos, como os dos jornalistas Antonio Maria, Nelson Rodrigues e Otto Lara Resende, a outros inusitados, como o humorista Jô Soares, o compositor Aldir Blanc e o cineasta Cacá Diegues. “Ao cronista tudo é permitido, menos entediar o leitor”, avisam as autoras logo na apresentação do livro.

Aperitivos literários

Uma das primeiras coleções a reunir textos de grandes cronistas se chamava Para Gostar de Ler e saiu pela Editora Ática, em 1976. Foi criada pelo editor Jiro Takahashi depois de uma ligação de Affonso Romano de Sant’Anna para falar sobre Rubem Braga. “Por que meus livros vendem pouco?”, queria saber o cronista. Nos primeiros cinco volumes, as crônicas eram de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. O mais recente título, Um Peixe Boiando no Ar (2024), é de Ricardo Azevedo.

Mas, e se a coleção Para Gostar de Ler fosse criada hoje, em 2025? Quem Jiro Takahashi convidaria para escrever os volumes dedicados a crônicas? “Humberto Werneck, Antonio Prata, Martha Medeiros e Ruy Castro”, responde o editor de 77 anos.

Gaúcha de Porto Alegre, Martha Medeiros lançou sua primeira coletânea do gênero em 1995: Geração Bivolt. Uma delas, Doidas e Santas (2008), chegou a inspirar filme, protagonizado por Maria Paula, e peça, estrelada por Cissa Guimarães. A crônica Pessoas Habitadas (2005), aliás, foi escolhida uma das cem melhores do Brasil por Joaquim Ferreira dos Santos, em 2007.

“A periodicidade é o grande diferencial da crônica em relação a outros gêneros mais perenes. Mas, não vejo isso como um demérito. É apenas a crônica sendo o que é, meio moleca em meio aos ‘adultos’. Um vagalume que ilumina um tema aqui e, no momento seguinte, acolá”, afirma Medeiros.

Quem cresceu lendo a coleção Para Gostar de Ler foi Janaína Senna. “Como eu, muitos da minha geração conheceram primeiro o cronista Drummond e só depois o poeta”, diz. Hoje, ela é editora da Nova Fronteira, responsável pela coleção Jovem Leitor. Com seis títulos publicados e dois a caminho, já dedicou volumes a Rachel de Queiroz, João Ubaldo Ribeiro e Carlos Heitor Cony.

“A crônica é ideal para leitores em formação, que ainda não têm fôlego de leitura ou não conhecem determinado autor. É como se fosse um aperitivo oferecido aos iniciantes. Incentivamos o interesse deles pelo banquete literário que os aguarda”, opinou Senna.

A Global tem duas coleções dedicadas ao gênero: Melhores Crônicas, com 36 títulos, e Crônicas para Jovens, com 13. Manuel Bandeira, Cecilia Meireles e Marina Colasanti, por exemplo, estão nas duas. “Os jornais e revistas deixaram de ser o espaço exclusivo para os cronistas darem o seu recado e passaram a conviver com outras formas de publicação, como o Instagram e o Substack”, exemplifica Gustavo Tuna, gerente editorial da Global. “Esses novos meios de publicação possibilitam um contato direto do autor com seus leitores. Infelizmente, muitos internautas aproveitam o espaço para fazer comentários inoportunos e rudes.”

A nova geração

Indagados sobre jovens talentos, Senna e Tuna citam, entre outros, Leo Aversa, de 57 anos, e Vanessa Barbara, de 43. Aversa começou a escrever aforismos e microcrônicas nas redes sociais por volta de 2013. Muitos likes e compartilhamentos depois, foi chamado para publicar crônicas no Colabora, um site de jornalismo independente sobre desenvolvimento sustentável, em 2015. O convite para assinar uma coluna no jornal O Globo, onde está até hoje, surgiu em 2018. “A crônica e a fotografia são bem parecidas: as duas são frutos da observação”, afirma o cronista e fotógrafo.

Para o autor de Crônicas de Pai (2021), a parte mais difícil é achar o assunto certo. “Se você escreve algo que está nas manchetes, mas não te diz nada pessoalmente, vira um texto burocrático. Por outro lado, se escreve algo que só interessa a você mesmo, pode ficar hermético. É preciso achar o equilíbrio. Uma vez definido o tema, o resto é mais fácil”, acredita o admirador confesso de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Antonio Prata. “De qualquer maneira, é preciso ficar atento às repetições. Já publiquei quase quatrocentas crônicas e, volta e meia, penso em algo que já disse antes.”

Versátil, Barbara já escreveu romance, infantil e até HQ. Dos seus onze livros, apenas um é de crônicas: O Louco de Palestra e Outras Crônicas Urbanas (2014). “Temos alguns raros cronistas em atividade: Humberto Werneck, Antonio Prata e Gregório Duvivier. Mas o fato de serem poucos não é culpa da crônica”, salienta. “Os jornais não estão mais interessados nesse tipo de texto, então quase não há espaço para publicar.” Barbara não escreve semanalmente desde 2017 quando saiu do Estadão. De 2019 a 2020, publicou na revista online Brechas Urbanas, do Itaú Cultural. “Adoraria continuar escrevendo esse gênero tão brasileiro, mas o mercado é extremamente limitado”, lamenta.

Por essas e outras, Barbara se considera uma cronista não praticante. “A crônica é considerada um gênero menor, mas eu acho que é imenso. É preciso ter um bom domínio de literatura e de jornalismo para acertar o tom – o texto não pode ser bobo, mas envolvente”, ensina.

“A maior virtude de um bom cronista é a versatilidade na hora de escolher os assuntos. Eu gostava muito de publicar uma crônica sobre astronomia, seguida de outra sobre horticultura, política, gatos, literatura e sapateado. É uma delícia poder escrever com esse grau de liberdade sobre assuntos aleatórios e variados.” E você, já leu uma crônica hoje?