01/01/2010 - 0:00
Praia de Imbassaúba, em Cumuruxatiba, uma das mais belas da região
Cumuruxatiba tem mironga, e das boas. Chegar lá é um tanto trabalhoso – são cerca de quatro horas de carro, 223 quilômetros ao sul de Porto Seguro (BA), 32 dos quais de terra batida. Sair de lá, no entanto, é mais difícil ainda. Para alguns, isso se revelou impossível. Basta ver o número de casados e solteiros, nacionais e estrangeiros, que lá foram, com toda inocência, passar uns dias de férias, deixaram-se tocar pela varinha mágica dos duendes do lugar e não resistiram. Arrumaram malas e cuias e lá se instalaram de modo definitivo.
Quem quiser explicar esse grude que Cumuru – como a chamam os íntimos – impõe não terá de investigar muito. Basta caminhar pelas praias do lugar, sem lenço nem documento, junto às ondas que quebram sobre as areias branquíssimas, ou no alto das falésias de arenito que as acompanham, todas elas recobertas de florestas de coqueiros. Se entregar à preguiça mais venial numa das redes que as pousadas à beira-mar oferecem. Partir para outro pecado, a gula, num dos restaurantes especializados em frutos do mar. Visitar logradouros de grande charme histórico, como a barra do Rio Cahy, logo ao lado.
Muitos historiadores acreditam que foi bem ali que Nicolau Coelho, um dos almirantes de Cabral, travou o primeiro contato de portugueses com índios. Hipótese reforçada por trechos da carta de Pero Vaz de Caminha e pela visão que se tem do Monte Pascoal, quando se está no mar, em frente ao Cahy.
CUMURU TEM PASSEIOS DE BARCO PARA VER DE PERTO AS BALEIAS JUBARTE. TEM UMA GASTRONOMIA FARTA, VARIADA E DE ÓTIMA QUALIDADE. TEM OS ARTESANATOS DOS ÍNDIOS PATAXÓS, SEUS PRIMEIROS HABITANTES
Acima, detalhe da Barra do Cahy, onde provavelmente desembarcaram os marujos de Pedro Álvares Cabral. Abaixo, polvo à moda de Cumuru e a índia Naiá, da tribo dos pataxós.
As atrações não param aí. Tem também os passeios de barco para ver, de bem perto, e a poucos quilômetros da praia, as baleias jubarte que, de julho a novembro, vão parir e amamentar seus filhotes naquelas águas calmas e pouco profundas. Não à toa, o litoral de Cumuruxatiba foi batizado de Costa das Baleias. Tem também o nascer e o pôr do sol, quando o céu fica vermelho e o mar fica dourado, e que deve ser contemplado de preferência do alto das falésias. Tem as cocadas da dona Neuza, na pracinha central do vilarejo. Ao lado fica a lojinha de artesanato da índia Naiá, pataxó da gema que, apesar de morar na cidade, faz questão de se enfeitar com seus adornos tradicionais. Tem a escolinha de navegação a vela para as crianças. Tem as lojasateliês das duas ceramistas do lugar, Eliana Begara e Renata Homem. Tem, no amanhecer e no entardecer, a chegada dos pescadores com seus balaios cheios de peixe.
No alto, baleia jubarte ao largo de Cumuruxatiba. Acima, garotos têm aula na escolinha de navegação. Ao lado, a lojinha Cocadas da Neuza, famosa em toda a região.
A lista dos encantos de Cumuruxatiba parece não ter fim. Rapidamente se percebe por que tanta gente da cidade grande, de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte e de Vitória, e até alguns baianos de Salvador, escolheram se estabelecer ali. Mas o que mais chama a atenção é que praticamente todos esses recém-convertidos à cumurumania preferem não viver apenas no desfrute da sombra e da água fresca. Cada um deles, além de desenvolver uma atividade profissional condizente com as características locais, dedicase a alguma função ou obra voltada à cidadania e à preservação ambiental e cultural do lugar. Parecem ter entendido que, sem isso, a segurança desse paraíso reencontrado estará ameaçada.
De cima para baixo, as duas ceramistas de Cumuru: Renata Homem e Eliana Begara, ambas com ateliês. Ao lado, Francisco Begara, o único médico da comunidade.
Os 32 quilômetros de estrada de terra batida cedo ou tarde poderão ser recobertos de asfalto, e por ele chegarão as hordas do turismo de massa, com seu habitual cortejo de mazelas e destruições.
O principal alvo do interesse dos neocumuruxatibanos, como não poderia deixar de ser, é a própria comunidade original do lugar. Quase todos os seus membros pertencem a famílias de pescadores, artesãos ou pequenos agricultores que há séculos vivem ali, até recentemente quase sem contato com o mundo exterior. Que fazer para prepará-los para a chegada da grande civilização de fora, sem que percam a sua encantadora e simples identidade? Despertar neles a consciência do valor do seu próprio patrimônio cultural e histórico foi a primeira necessidade enfrentada. Várias iniciativas foram tomadas nesse sentido.
A chef Dolores Lameirão, por exemplo, veio de Angola e levou a Cumuru todo o conhecimento de gastronomia que desenvolveu em seu país, e depois em Portugal, na França e na Suíça. Foi lá que ela conheceu o suíço Walter Kunzi, com quem se casou, teve dois filhos, e montou em Cumuruxatiba o restaurante Mama África, um must do lugar. Junto a dois outros casais (os dentistas Ricardo e Andréia Belucio, donos do Café Gelato, e Luiz Fernando e Helena), Dolores e Walter dão cursos de culinária e gastronomia para jovens carentes de Cumuru. A bióloga Juliana e sua amiga Lucinha dirigem um grupo de danças típicas. O capoeirista P de Serra montou um grupo de capoeira.
QUASE TODOS OS MORADORES DE CUMURU PERTENCEM A FAMÍLIAS DE PESCADORES OU PEQUENOS AGRICULTORES QUE HÁ SÉCULOS VIVEM ALI
Aldo, Rogério e Giorgio (navegador italiano que depois de girar o mundo se estabeleceu em Cumuru com a esposa e filhos) criaram uma escolinha de navegação a vela para as crianças da comunidade. Filhos de turistas podem frequentar as aulas, pagando uma taxa módica para ajudar na manutenção dos barquinhos. Dona Elizete e seu marido, Rui, donos do restaurante Catamarã, criaram um ateliê-cooperativa para ensinar bordados e artesanatos com tecidos a dezenas de meninas e adolescentes da comunidade.
Boom turístico
A Vila de Cumuruxatiba, pertencente ao município de Prado, no sul da Bahia, inclui o núcleo urbano e arredores. Tem cerca de 5 mil habitantes, aproximadamente 70 pousadas e outros tantos restaurantes, quase sempre especializados em peixes, camarões, lulas, polvos e lagostas. Para os padrões das cidades turísticas, os preços praticados são bastante razoáveis.
As praias são muitas, todas bonitas, com destaque para a Japara Grande e a Japara Mirim, a de Imbassaúba e da Barra do Cahy. Elas nunca estão muito cheias.
Além do passeio de barco para ver as baleias (que acontece apenas entre julho e novembro), várias outras excursões podem ser feitas por mar. Pode-se ir até a Ponta do Corumbau e Caraíva, com parada na aldeia pataxó de Barra Velha, cujo acesso é possível somente por meio de barco.
As opções de hospedagem são ótimas. A Pousada Rio do Peixe é considerada a melhor, oferecendo tudo que um hotel de primeira tem. Mas várias outras nada deixam a desejar, como a Pousada É, a Uai Brasil, a das Cores, todas elas situadas na praia. Há também as pousadas Axé e a Clara, destaques no centro urbano.
Os produtos são vendidos numa pequena butique ao lado do restaurante. Metade do que se arrecada é repartido entre as meninas, a outra metade é para a reposição do material. Luiz e Milena, donos da Pousada Rio do Peixe, dedicam-se a um projeto de reforço escolar, para ajudar os alunos que têm dificuldades nos cursos regulares a passar de ano. O médico Francisco Begara, por seu lado, desenvolve um trabalho de aconselhamento sanitário para a comunidade e nas comunidades indígenas pataxós.
Francisco, por sinal, é o único médico de Cumuruxatiba, onde toma conta do dispensário. Nascido no Marrocos, formado em São Paulo, ele e a esposa, a ceramista Eliana Begara, estão lá há pouco mais de um ano. “Este lugar é um problema para um médico, pois aqui ninguém fica doente”, conta. “Quando aparece alguém no dispensário, é só para tratar de um resfriado ou do hematoma de algum moleque que despencou do coqueiro.
COMO NA JAPARA GRANDE (ACIMA), NA MAIOR PARTE DAS PRAIAS DE CUMURU DESÁGUAM PEQUENOS RIOS DE ÁGUAS CRISTALINAS QUE FORMAM PISCINAS ENTRE A TERRA E A AREIA
O caso mais grave que enfrentei, há uns quatro meses, foi o parto de uma índia pataxó de 23 anos. Ela chegou em avançado trabalho de parto, mas logo vi que a criança estava em má posição. Como em Cumuru não tem maternidade nem hospital, achei melhor levá-la às pressas para a cidade de Prado, a uns 50 quilômetros de distância, por estrada de terra.
Acima, Dona Elizete, dona do restaurante Catamarã. Ao lado, a angolana Dolores Lameirão, dona do restaurante Mama África. Ambas fazem parte do grande time de chefs de cozinha de Cumuru, quase todos especializados em peixes e frutos do mar.
No meio da viagem, talvez devido aos solavancos do meu pequeno Fiat, o bebê acertou a posição, e a índia gritou lá do banco de trás: ‘Doutor, ela tá saindo.’ Parei o carro na beira da estrada e fiz o parto ali mesmo. Quando vi a cabeleira escura da menina, exclamei: ‘Ela já nasceu de cocar!’ Quinze minutos depois, a índia estava com seu bebê nos braços, enrolado nuns panos que eu levara no carro. Voltamos para o dispensário, em Cumuru, fiz uma higiene geral na mãe e na filha, e logo depois lá se foi ela, de volta para a aldeia, carregando a criança.”
Durante a temporada, nos fins de semana, os grupos de dança, de percussão, capoeira, e ocasionalmente outro grupo composto por índios pataxós, se exibem num espaço especialmente preparado, num ângulo da pracinha central da vila. Nessas ocasiões, arma-se um mercadinho de artesanatos regionais no mesmo local. A entrada é franca.
Em Cumuruxatiba, a visita ao santuário das baleias jubarte é uma aventura à parte. Há milênios elas frequentam as calmas e tépidas águas da região, perfeitas para a fase de acasalamento, parto e amamentação desses cetáceos gigantes. “Elas não vêm aqui para comer, e sim para se reproduzir”, explica a bióloga Juliana, quando nos dirigimos a bordo do barco Libra para a área onde as baleias e seus filhotes se concentram. “O restaurante delas é nas águas frias da Antártica, cheias de camarões krill e de cardumes de sardinhas e outros pequenos peixes, para onde elas vão a partir do final de novembro. Aqui é só para namorar e acasalar e para cuidar dos bebês até que eles estejam fortes o suficiente para acompanhar as mães nessas longas viagens.”
Na zona onde as jubartes se concentram o show é contínuo e o piloto do barco mal sabe para onde se dirigir: há baleias navegando à direita e à esquerda. Para saber onde elas estão, basta prestar atenção na superfície do mar e, de repente, shshsshshs! Lá está o jato d’água que elas emitem ao respirar na superfície, e que denunciam suas posições. Jato localizador que, por sinal, permitia aos baleeiros matarem milhares de jubartes todos os anos, quase levandoas à extinção.
Quando o barco se aproxima, algumas, mais tímidas, mergulham e fazem aparecer a cauda manchada de branco. Outras não estão nem aí. Acostumadas à presença das embarcações carregadas de pessoas, elas parecem saber que tudo que queremos delas são algumas fotografias. E existem inclusive as exibidas, que não só não fogem como dão performances na forma de saltos (os machos, quando tentam impressionar alguma fêmea), ou mantêm por vários minutos o rabo fora d’água, batendo na superfície (as fêmeas, quando querem enxotar os pretendentes).
O passeio às baleias dura umas quatro horas, com água e frutas a bordo. Os mais sujeitos a náuseas devem tomar algum remédio antienjoo uma hora antes de embarcar. Uma tempestade estomacal é a forma mais fácil de estragar o passeio.
SERVIÇO
PLANETA visitou Cumuruxatiba a convite da Associação dos Empresários de Turismo e Hotelaria de Cumuruxatiba (Cumurutur), da companhia aérea Gol e da Assimptur. Mais informações: www.cumuruxatibabahia.com e www.assimptur.com.br