15/08/2019 - 9:30
Em linha reta, Cusco, no sudeste do Peru, está a pouco menos de 580 quilômetros da capital do país, Lima, e um voo comercial até lá dura pouco mais de 40 minutos. Por terra, porém, a história é muito diferente – vencer o acidentadíssimo percurso de pouco mais de 1.000 quilômetros exige cerca de 14 horas, se tudo correr bem. A explicação para tamanha diferença é simples: Cusco, a capital do império inca, está em plena cordilheira dos Andes, 3.400 metros acima do nível do mar. Frequentemente o visitante tem de recorrer ao famoso chá de coca para combater o mal da altitude até se acostumar às condições locais. Quem pensaria em criar o centro administrativo de um império numa região dessas? Os incas pensaram. E, até os invasores espanhóis chegarem, no século 16, tudo ia muito bem por lá.
Patrimônio Cultural da Humanidade desde 1983, Cusco (“umbigo do mundo”, na língua quéchua) fica na parte norte do vale do rio Huatanay, caracterizado pelas boas terras para a agricultura – ali se cultivam ainda hoje milho, cevada, batata, quinoa e chá, por exemplo – e por hoje extintos veios de ouro. Capital geográfica e espiritual do império inca, ela abrigou todos os 13 imperadores dessa civilização.
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Segundo estudos arqueológicos, a área onde está Cusco era habitada 3 mil anos atrás. Já de acordo com as lendas incas, a cidade teria sido fundada por volta de 1200 d.C. por Manco Capac, criador da civilização inca. Diferentemente de muitas capitais antigas, Cusco nasceu como um centro quase que exclusivamente governamental e religioso, com poucas residências em sua área. Por volta de 1400, porém, cerca de 20 mil pessoas já viviam ali, e o poder da cidade se estendia por grande parte do território andino mais ao sul.
Importância ampliada
Cusco passou por uma reformulação sob o governo do nono imperador inca, Pachacuti Inca Yupanqui (1438-1471), que acrescentou à capital relevância cultural e religiosa. Nesse período, o domínio inca se estendeu até Quito (atual capital do Equador), ao norte, e ao rio Maule (Chile central), ao sul – uma extensão de 4.500 quilômetros, basicamente sobre terras montanhosas. Era o império conhecido como Tawantinsuyu, a “terra dos quatro quadrantes”, que tinha em Cusco seu símbolo maior.
No centro da capital estava o Coricancha, também chamado de Templo Dourado – um elaborado santuário dedicado ao deus-sol Inti, erguido com uma sofisticada alvenaria de pedra e coberto de ouro. Segundo a lenda, o Coricancha foi construído pelo primeiro imperador inca, Manco Capac, mas certamente Pachacuti o expandiu em 1438. Esse complexo serviu como a encruzilhada para toda a extensão e largura do império inca – sua localização geográfica era o ponto focal para os “quatro bairros”, como os líderes incas se referiam ao seu império, bem como um santuário e um símbolo para a principal religião imperial. Os espanhóis chamaram o complexo de “Templo do Sol” e retiraram o ouro de suas muralhas para enviá-lo a Madri. No século 16, foram construídos uma igreja e um convento dominicano sobre suas fundações maciças.
Há em Cusco e em seus arredores vários outros santuários e templos (“huacas”, em quéchua), cada qual com um significado especial. Entre eles estão construções como o observatório astronômico de Q’enko e a fortaleza de Sacsayhuaman. Toda a cidade era considerada sagrada, composta de huacas que definiam e descreviam a vida dos habitantes do império.
Quando os invasores espanhóis lá chegaram, em 1532, a capital inca era o maior núcleo urbano da América do Sul, habitado por cerca de 100 mil pessoas. Em 1534, o conquistador Francisco Pizarro assumiu seu controle e deu início a um processo de dessacralização da cidade, reordenando-a sob um prisma cristão. A condição de capital do Vice-Reino do Peru foi concedida à recém-construída Lima, no litoral.
Roma dos Andes
Mesmo despojada de sua importância, Cusco continuou com uma aura especial. Para os europeus do século 16, a cidade era conhecida como a Roma dos Andes, e mesmo durante o período colonial ela se manteve como uma representação idealizada do antigo esplendor inca. Com a independência peruana, em 1821, Cusco se tornou a raiz pré-hispânica do novo país.
Uma das características mais marcantes da cidade são seus impecáveis trabalhos em alvenaria, realizados principalmente no período de Pachacuti. Os canteiros (artífices responsáveis por talhar as pedras usadas nessas obras) que os produziram e seus sucessores criaram o “estilo inca de alvenaria”, uma cuidadosa modelagem de grandes blocos de pedra feita de modo que eles se encaixassem uns nos outros sem o uso de argamassa, com uma precisão milimétrica.
Um detalhe que aumentava a dificuldade do trabalho é o fato de que os incas não tinham à sua disposição animais de carga – lhamas e alpacas são delicadas para essa tarefa. A conclusão é que as pedras usadas para essas edificações em Cusco e em outras partes do império inca eram extraídas, transportadas e assentadas basicamente à mão.
A técnica de alvenaria desenvolvida em Cusco se disseminou por outros pontos do império, como Machu Picchu. Talvez o melhor exemplo dela na capital inca seja um bloco esculpido com 12 bordas para encaixar na parede do palácio do Inca Roca. Um testemunho evidente de sua qualidade é a resistência que tem demonstrado aos terremotos – dois deles, particularmente fortes, ocorreram em 1650 e em 1950. Após este último, aliás, mais de um terço da arquitetura colonial cusquenha veio abaixo. Mas as construções incas, como o Coricancha, permaneceram intactas.
Polo turístico mundial, hoje Cusco abriga perto de 430 mil habitantes. Além de seu apelo histórico e arquitetônico (enriquecido por importantes museus), a cidade é procurada como base para visitas ao Vale Sagrado e a Machu Picchu, outros pontos de interesse da cultura inca. Andar por suas ruas e atrações, particularmente durante a alta estação, é garantia de encontrar gente dos mais variados cantos do mundo – um momento cosmopolita especial em meio às montanhas andinas.
Caminhos incas
Das praças centrais de Cusco se irradiavam os Caminhos Incas, um sistema de estradas com quase 40 mil quilômetros de extensão que se espalhava por todo o império (na foto à direita, trecho de um deles em seu estado atual). Tornado sítio do Patrimônio Mundial pela Unesco em 2014, o sistema foi bastante utilizado pelos espanhóis durante o período de conquista, mas depois disso, sem manutenção, ele foi-se deteriorando. Atualmente, calcula-se que apenas 25% dessas construções ainda são visíveis – mas o que pode ser visto é um ótimo exemplo da engenharia inca.
Cidade do puma
Segundo Pedro Sarmiento Gamboa, historiador espanhol do século 16, o imperador inca Pachacuti planejou Cusco na forma de um puma (espécie de onça). A concepção ganhou do historiador uma palavra específica para defini-la: “pumallactan”, ou “cidade do puma”, na língua quéchua. Pela interpretação de Sarmiento, a maior parte do corpo do animal é composta pela praça central Haucaypata, definida pelos dois rios que convergem para sudeste para formar a cauda. O coração do puma é o Coricancha, enquanto a cabeça e a boca eram representadas pela fortaleza de Sacsayhuaman.