Charles Darwin certamente teria ficado fascinado. A revolucionária teoria que o naturalista inglês desenvolveu a partir de sua viagem ao redor do mundo surgiria muito mais rapidamente – e com muito mais detalhes – se ele tivesse acesso ao Avida.

Software criado no Instituto Tecnológico da Califórnia (Caltech), em 1993, pelo físico alemão Christoph Adami, em parceria com Charles Ofria (hoje diretor do Laboratório de Evolução Digital da Michigan State University, outro importante centro norte-americano dessa área) e C. Titus Brown, o Avida tem alvoroçado o estudo da evolução.

Certo, a vida ali presente não é baseada em carbono – o programa só existe no computador e trabalha apenas com números. Mas as condições elaboradas pelos cientistas para investigar as incontáveis gerações de “seres” ali criados trazem informações que reforçam as premissas do darwinismo e colocam em xeque as convicções criacionistas.

O uso de programas de computador para estudar a evolução é recente. O primeiro software com essa finalidade foi o Tierra, desenvolvido em 1991 pelo ecólogo norte-americano Thomas Ray. A idéia original por trás do Tierra era simples: tal como o DNA “ensina” a célula a montar as proteínas, o programa de computador “conta” ao aparelho como processar informações.

No ambiente criado por Ray, programas simples lutavam pelo espaço na memória do computador, em “existências” marcadas por replicações e mutações aleatórias que, se bem-sucedidas, os favoreceriam na disputa para incorporar seu “genoma” (programação) às etapas seguintes.

No fim dos anos 90, Adami – que trabalhava com biologia evolutiva desde 1992 – decidiu produzir uma nova versão do Tierra, bem mais rápida e complexa que seu antecessor. Assim nasceu o Avida. Adami criou “organismos digitais” primitivos – fileiras de comandos, aparentados com vírus de computadores, que podem produzir dezenas de milhares de cópias de si próprios em minutos -, aos quais oferecia “alimentos” (números) a intervalos regulares.

…Festival da evolução

Darwin citou a diversidade de raças de cães como um exemplo de evolução acelerada. Poucos cães domésticos se parecem com os lobos – seus antepassados -, com os quais eles ainda podem se acasalar e procriar. “Quem poderia acreditar que animais como os atuais cães domésticos nunca existiram em estado selvagem?”, escreveu Darwin. “Se os humanos puderam criar uma tal diversidade de cães em apenas alguns séculos, outros organismos podem se desenvolver do mesmo modo ao longo dos milênios”, concluiu.

No começo, os organismos não faziam nada com aquilo. Mas a cada instante em que um deles se replicava, havia uma reduzida chance de que uma de suas linhas de comando sofresse uma mutação, tal como ocorre com o DNA dos animais. E isso começou a acontecer.

Em geral, as replicações mutantes – como um pedaço de código a mais ou em lugar trocado – redundam em programas defeituosos. Uma fração delas, porém, pode deixar o programa mais curto, mais rápido, mais flexível ou mais complexo, tornando-o mais bem adaptado para alimentar-se e se reproduzir. Depois de várias gerações, esses mutantes podem ter composição totalmente diversa do programa original e, uma vez adaptados ao meio, proliferar no mundo do Avida, tal como na natureza.

Após vários aperfeiçoamentos, os organismos digitais do Avida se aproximam cada vez mais da definição de vida biológica aceita pela ciência. Exemplificando, eles “comem” (números binários, de preferência), executam tarefas (na forma de pequenos algoritmos) e se reproduzem. Mas possivelmente a vantagem fundamental do Avida seja a velocidade com que tudo ocorre: as gerações de organismos digitais surgem e desaparecem bem mais rápido do que na natureza.

Avida é prato cheio para investigar

Foi o que convenceu o microbiólogo Richard Lenski, da Michigan State University, ao se tornar um usuário intensivo do programa. Não é uma adesão qualquer: Lenski responde pelo mais longo experimento contínuo em evolução. “Em uma hora, posso reunir mais informação do que jamais conseguimos juntar em anos de trabalho”, afirma.

O Avida é um prato cheio para investigar vários aspectos das teorias de Darwin. Um deles, por exemplo, menciona que sistemas complexos, como o olho humano (não funciona se uma única parte estiver faltando), evoluem a partir de antecessores mais simples. Já para os criacionistas, os órgãos complexos seriam um produto acabado, um caso típico de design inteligente.

A equipe do Avida preparou uma experiência a esse respeito. Foi escolhida uma operação que compara pares de números binários – bastante comum em programas de computador. A estratégia era recompensar os organismos digitais pelas versões mais simples da operação e aumentar substancialmente o prêmio pelas mais complicadas.

Em 23 das 50 experiências feitas surgiram organismos capazes de fazer a operação indicada – cada qual à sua maneira (Darwin afirmou que o mesmo órgão complexo poderia resultar de diversas trilhas evolucionárias).

Quando os pesquisadores deixaram de recompensar as versões mais simples, nenhum dos organismos que surgiram a seguir foi capaz de executar a operação.

Outra questão atraente é a da diversidade. O que levaria um ambiente a ser habitado por várias espécies? Segundo os ecologistas, quanto mais energia um habitat oferece aos organismos, mais espécies ele pode acolher. Se houver produção em excesso, porém, menos espécies conseguirão sobreviver ali.

A equipe do Avida criou um software que controlava o suprimento de números, criando mundos digitais em que a quantidade de alimentos variava da abundância à escassez. Resultado: quando havia uma quantidade muito grande ou muito pequena de números para alimentação, só uma espécie sobrevivia. Mas quando essa quantidade ficava numa faixa intermediária, três ou quatro diferentes tipos de organismos se estabeleciam e coexistiam.

Charles Ofria decidiu conduzir a experiência mais uma vez, controlando melhor o limite ao suprimento de números, e se surpreendeu com os resultados. Enquanto no experimento original os organismos desenvolveram a capacidade de fazer a operação requisitada em 23 das 50 tentativas, na nova experiência todos os seres foram capazes de fazê-la – e consumindo apenas 20% do tempo usado anteriormente. Para Ofria, isso poderia indicar que, em vez de uma, várias espécies estão evoluindo nesse experimento, pois um número maior de espécies significa oportunidades ampliadas de sucesso.

Sexo é estudado com afinco

O sexo – ou, em termos evolucionários, a mistura do material genético de dois pais para dar origem a uma criança – é outra área que a equipe do Avida tem estudado com afinco. Se a reprodução assexuada é possível, por que haveria sexo? Para responder a essa pergunta, o biólogo Dusan Misevic, da Michigan State University, introduziu o tema no Avida em 2003 e 2004. Naturalmente sem o charme da relação a dois humana. O sexo digital imaginado por Misevic não deixava a cópia de um organismo digital assumir imediatamente seu lugar no Avida e começar a reproduzir-se. Em vez disso, fragmentos de seu código eram permutados com a cópia de outro organismo, e só depois dessa troca as duas criaturas podiam se reproduzir.

…Orquídeas e insetos

Na obra The Various Contrivances by Wich British and Foreign Orchids Are Fertilided by Insects (1862), Darwin desmentiu a crença generalizada de que essas delicadas flores tinham sido criadas por Deus para agradar aos seres humanos. Ele demonstrou que, na verdade, as orquídeas desenvolveram todas essas formas para atrair insetos polinizadores. A co-evolução das orquídeas com uma enorme variedade de insetos produziu a surpreendente diversidade dessas plantas.

Misevic criou dois tipos de mundos: um com organismos digitais sexuados e outro com assexuados. Após uma evolução de dezenas de milhares de gerações, o pesquisador mediu a velocidade com que eles se replicavam.

Sua conclusão foi que, em algumas circunstâncias, o sexo é benéfico em termos evolutivos – especialmente porque constitui uma forma de superar a aniquilação provocada por mutações letais. Houve, no entanto, uma contrapartida: os organismos sexuados da experiência portavam mais mutações não letais (não prejudiciais) do que os assexuados.

Nem a hipótese de vida alienígena escapou dos pesquisadores do Avida. Evan Dorn, membro da equipe de Adami na Caltech, aceita essa possibilidade e preparou uma experiência a respeito. De início, ele criou um mundo sem vida – em vez de um programa que permitia a reprodução, cada célula continha um sortimento aleatório de comandos, presentes em níveis iguais. Depois, povoou esse mundo com organismos, à maneira de esporos caindo na Terra.

No começo, a taxa de mutação era tão elevada que nenhum esporo conseguia replicar muito tempo. Logo depois, Dorn começou a reduzir gradualmente essa taxa, até criar condições de sobrevivência. “Assim que o ambiente se tornou habitável, os organismos o dominaram”, conta ele.

Nesse processo, o pesquisador descobriu que alguns comandos se tornaram raros, enquanto outros ficaram muito mais comuns – tal como uma “marca registrada da vida”. Ela sempre apareceu nas diversas repetições das experiências feitas por Dorn.

A engenhosidade da vida em se adaptar para evoluir – visível, por exemplo, nas bactérias resistentes a antibióticos – é outro tema que rendeu interessantes estudos para o Avida. Charles Ofria decidiu criar barreiras para impedir os organismos digitais de se adaptarem: assim que um deles sofresse mutação, ele faria um teste especial para verificar se ela era benéfica – e, em caso afirmativo, matava o organismo.

…Roupagens de pássaros

Os tentilhões tiveram um importante papel na formação das idéias de Darwin sobre os processos evolutivos pela seleção natural. Nas ilhas Galápagos, em 1835, ele coletou espécimes de 13 espécies desse pássaro, cada uma delas com um bico diferente, adaptado para a coleta de distintos tipos de comida. Os machos de cada espécie, de seu lado, desenvolveram diferentes plumagens para atrair as fêmeas na época do acasalamento.

Quem pensa que houve um extermínio em massa errou: os seres digitais aprenderam a processar informações de novas formas e conseguiram replicar-se mais rapidamente, de tal maneira que Charles Ofria demorou a perceber que fora enganado por eles.

Essa capacidade infinita de adaptação assusta várias pessoas que trabalham na área. Ela poderia, por exemplo, ser associada a vírus de computador para multiplicá-los, com efeitos devastadores. Ou servir de base para robôs auto-replicantes – que, nas fantasias de ficção científica, em certo momento sempre se rebelam contra seus criadores. É uma ameaça remota, mas possível.

“Aqui estou observando o Avida como um maravilhoso sistema em que você tem conhecimento completo de tudo e pode controlar qualquer coisa que deseje – mas não posso evitar que eles parem de se adaptar”, comenta Ofria. “A vida sempre encontra um caminho.”

Na Internet

Para acessar o Tierra, entre no site www.his.atr.jp/~ray/tierra; para o Avida, digite dllab.caltech.edu/avida