17/04/2014 - 11:38
No fim do mundo, na Antártica, Sebastião Salgado fotografou-se refletido no olho de um elefante-marinho bebê (veja acima). Foi como se um elo da cadeia da evolução se fechasse diante do fotógrafo brasileiro.
O mineiro Sebastião Salgado é um dos fotógrafos mais famosos do mundo, celebrado pelo virtuosismo dramático das suas fotos em preto e branco, como em Genesis, seu último trabalho, de 2013, que aborda a natureza intocada nos lugares mais remotos do planeta. Em 1969, esse mineiro de Aimorés, ex-militante do movimento estudantil, emigrou desgostoso para a França com a mulher, a então estudante de arquitetura Lélia Wanick Salgado, a fim de fazer uma tese de pós-graduação em economia. Na Europa, trabalhou como economista na Organização Internacional do Café e participou de missões do Banco Mundial. Fez suas primeiras fotos a trabalho, na África.
Em 1973, Salgado virou fotógrafo independente e construiu uma reputação sólida nas agências Sygma, Gamma e Magnum, na França. Hoje, dirige sua própria agência, a Imagens da Amazônia.O casal, que tem dois filhos, continua a viver em Paris. Na abertura da exposição Genesis, na casa Tre Oci, em Veneza, Salgado e Lélia conversaram com a PLANETA sobre a inspiração de seu trabalho, a preparação das reportagens, as dificuldades enfrentadas em viagens e o sempre delicado momento de escolher as melhores entre milhares de fotos. Para além das imagens, o casal está empenhado na obra do Instituto Terra e no Projeto Terrinha, desenvolvidos na fazenda da família, no Vale do Rio Doce, em Minas, onde estão sendo plantados 2,5 milhões de árvores nativas da Mata Atlântica em terrras devastadas. Ambos os projetos promovem a silvicultura e a educação ambiental na comunidade.
Como a fotografia nasceu para você?
Sebastião: A minha fotografi a nasceu lá pelo interior de Minas Gerais, com as colinas e as montanhas fantásticas da minha região. Seguramente, foram aquelas luzes do período anterior às chuvas, as nuvens fabulosas, os raios fantásticos, as montanhas sem fim. Eu tinha o sonho de ir ver mais longe. Acho que foram a luz e o relevo de Minas que entraram na minha fotografi a. Quando olho uma fotografi a
minha, vejo um pouco dessa luz por tudo.
Como é viver longe do Brasil?
Sebastião: Foi difícil morar tanto tempo fora. Quando eu saí, em 1969, havia um Brasil, e hoje há outro. As cidades tinham se modificado e as pessoas tinham envelhecido. Deixei os meus pais ainda fortes, jovens, e reencontrei-os envelhecidos. Foi muito difícil. A sina de refugiado é difícil. Acho que os países que recebem refugiados e imigrantes têm que respeitálos porque eles deixam muito para trás quando saem, perdem muito.
É difícil se destacar como fotógrafo estrangeiro em outro país?
Sebastião: Não, não foi. Os franceses têm um grande sentido de solidariedade. Fui bem-aceito e respeitado, tive a possibilidade de trabalhar. A minha base de trabalho é a França, mas o meu trabalho é o mundo. Eu viajo sempre. No projeto Genesis eu voltava à França para fazer edição, reabastecer a energia vital com a família e continuar correndo o planeta.
Como nasceu o projeto Genesis?
Sebastião: O projeto nasceu em Aimorés, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Quando começamos a plantar uma floresta na fazenda dos meus pais, voltou a vontade de fotografar. Naquele momento eu tinha praticamente abandonado a fotografi a. Voltei fotografando a natureza. Acho que a natureza é uma prioridade global. Temos de priorizar o ambiente como fazemos com a redistribuição da riqueza e o fim da pobreza. O ambiente é uma necessidade suprema.
Qual é o critério para escolher os lugares visitados no Genesis?
Lélia: Fizemos pesquisas durante dois anos e elegemos 32 destinos. São lugares ainda puros, que não sofreram transformações. Procuramos animais selvagens, não domesticáveis, e comunidades que vivem de maneira original, distantes das sociedades de consumo em que vivemos. Organizar o acesso a esses lugares é sempre complicado. Por exemplo, no Pantanal, para chegar a alguns lugares tivemos de contar com fundações, ONGs, procurar guias, etc.
E a logística, a alimentação?
Lélia: Levamos alimentação para onde vamos. Até porque nesses lugares não há lugar para comprar comida. Na Amazônia, os índios caçam para eles e, logicamente, não têm a obrigação de caçar para nós. Também não podemos dar-lhes a nossa alimentação, para não interferir na sua cultura. Em algumas expedições, havia 20 mulas para carregar tudo e forragem para alimentar os animais. Organizar a equipe, decidir o número de pessoas que viaja conosco, também não é fácil. Em Galápagos, no Equador, alugamos um barco durante dois meses. Eram o capitão e mais três pessoas. Dois caminhavam conosco, um guia e um ajudante com as mochilas. Às vezes, o barco nos deixava em um lugar, passávamos dois ou três dias sozinhos e ele ia nos pegar em outro ponto.
Como conseguir transporte?
Lélia: O mais difícil é caminhar, subir e descer dentro da floresta. Foi muito complicado caminhar na África quando Sebastião foi fotografar os gorilas das montanhas de Ruanda e do Congo. É bem difícil caminhar atrás de gorilas. Temos de caminhar muito rápido entre aclives e declives e há várias plantas que se enredam nos pés. Você cai bastante.
Como se faz a edição em meio a tantas fotografias do Genesis?
Lélia: Cada vez que voltamos de uma reportagem, fazemos um recorte de uma quantidade de imagens. Essas imagens são as que vão para as revistas. Em seguida, fazemos ampliações grandes das melhores e guardamos. No fim, escolhemos as mais representativas para o projeto. A quantidade fi nal, eu escolho. Eu fiz o livro. O Genesis tem mais de 500 fotos e a exposição, quase 250. Há duas versões do livro, o livro grande e o menor, que são completamente diferentes. O livro menor é como a exposição, dividido em cinco seções. Já o grande é mais estético, com uma foto atrás da outra seguindo certo caminho. Como era um livro para ser vendido no Hemisfério Norte, fiz para ser vista uma foto por dia. Começa com fotos do inverno, com lugares frios, vai esquentando de acordo com o passar do ano e termina voltando para o frio.
Como foi a mudança das câmeras analógicas para digital?
Lélia: Depois dos atentados de 11 de Setembro, ficou complicado passar pelos radares dos aeroportos com filmes. Como o Sebastião viajava com 500 filmes, tinha de abrir a bolsa e mostrá-los à polícia para eles não passarem pelo raio X, que estraga a qualidade dos filmes. Isso era muito complicado, uma cena em cada aeroporto. Era assim até ele fazer uns testes com algumas câmeras novas e resolver passar a fotografar no modo digital. Facilitou muito! Antes carregava uma mala com quilos de filmes e agora carrega uma caixinha cheia de cartões de memória.
O que você sentiu quando fotografou um gorila que se viu refletido na lente da câmera?
Sebastião: Foi uma coisa muito forte, muito importante. Eu estava fotografando no Parque Virunga, em Ruanda, e um jovem gorila veio na minha direção. Eu estava com câmeras de médio formato, que são câmeras grandes com lentes planas na frente. Quando você olha direto numa lente, é como um espelho. Ele fez um movimento e identificou o movimento. Ele estava se vendo no espelho! Chegou pertinho de mim e começou a colocar o dedo na boca e a retirar, e a identificar que era o dedo dele. Estava se vendo pela primeira vez e tendo a consciência da imagem vista em reflexo. Eu fiquei emocionado. Senti-me dentro da minha espécie, há 50 mil anos, tomando água num riacho e vendo minha imagem pela primeira vez. Eu estava presenciando um dos elos da cadeia da evolução na minha frente.
Na Antártica, você surge refletido no olho de um elefante-marinho.
Sebastião: Exatamente. Nessa foto eu estou refletido no olho desse bebê de elefante-marinho na Ilha Geórgia do Sul, dentro do Círculo Polar Antártico. É uma volta completa, não? Qual é a mensagem de Genesis? Sebastião: Gostaria que as pessoas vissem nessa exposição uma compreensão do planeta. Gostaria que respeitassem o planeta, admirassem-no e compreendessem que também são parte dele. Nós também somos natureza.
Você elogia os parques naturais dos Estados Unidos. E a Amazônia?
Sebastião: Os americanos realmente conseguiram guardar, desde o século XIX, uma grande quantidade de terras convertida em parques nacionais. São territórios realmente protegidos, inclusive no Alasca. O Brasil precisa tomar essa posição. O tratamento que americanos, canadenses e australianos deram às populações indígenas foi uma barbaridade, uma chacina. O Brasil não. Temos uma instituição chamada Funai que consegue proteger boa parte das tribos indígenas. O Brasil é o único país do mundo que possui 12,5% do território com população indígena.
Temos comunidades ainda sem contato com a civilização. A Funai trata de protegê- las da melhor maneira possível. Como nasceu o Instituto Terra?
Lélia: Quando fotografamos Os Imigrantes, houve momentos difíceis, duros, como o massacre dos hutus contra os tutsis, em Ruanda. A gente saiu abalada. Nessa época, os meus sogros, idosos, donos de uma fazenda no Vale do Rio Doce, em Minas, quiseram que a gente a comprasse. Compramos, mas não sabíamos o que fazer com ela. Então, começamos a observar que a terra estava degradada, e tive a ideia de replantar a floresta. O Sebastião adorou e começamos a trabalhar. Temos um amigo, engenheiro florestal, que fez um projeto. Ele viu quais espécies da Mata Atlântica existiam antes. Estamos plantando 2,5 milhões de árvores em 700 hectares. Começamos com o nosso dinheiro, montamos o projeto e saímos atrás de patrocinadores. Recebemos ajuda da administração da Emilia Romagna, da província de Roma, do Friuli, de Veneza e da cidade de Parma. Também dos EUA, França e Espanha. Quinze anos depois, temos dois milhões de árvores, uma floresta “criança”, maravilhosa. E o Projeto Terrinha? Lélia: A implantação da floresta trouxe ideias. Tínhamos que difundir a silvicultura que estávamos implantando na região. Então, focamos na educação ambiental. Isso significa pensar nas crianças. O Terrinha é um projeto de conscientização ambiental para crianças nas escolas.