04/08/2015 - 19:09
O estilo de vida urbano acelerado, artificialmente iluminado e instigante dos dias de hoje está tirando o sono de muita gente. Queremos sempre estar conectados 24 horas nos sete dias da semana, produzir mais, experimentar mais e curtir mais a vida. Deixamos, assim, o descanso para o post-mortem, seguindo a máxima do “quando eu morrer, terei muito tempo para dormir”.
Conclusão: as galinhas têm ido dormir sozinhas. Mas o desaforado despertador, a versão moderna da função do galo, continua tirando as pessoas cedo da cama, porque nas cidades é preciso se deslocar por distâncias cada vez maiores e mais congestionadas para se chegar ao trabalho ou à escola.
Em comparação com 50 anos atrás, o tempo de sono foi reduzido em cerca de duas horas por noite nos centros urbanos. Entre os seis países pesquisados pela associação norte-americana National Sleep Foundation, americanos e japoneses têm as piores médias, em torno de 6h30 por noite. Mas, quanto mais se relega o descanso a segundo plano, mais a medicina descobre seu papel de protagonista na regulação do bem-estar do corpo e da mente.
A medicina do sono é uma área recém-nascida (no Brasil, foi reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina em 2011), porque os meios para pesquisar o que acontece nos nossos circuitos internos tiveram seus primórdios apenas em 1929, com a invenção do eletroencefalograma (EEG). O equipamento permitiu ver a atividade elétrica do cérebro sem precisar abrir, literalmente, nossas cabeças.
Mais recentemente ainda, há cerca de 40 anos, a criação do exame de polissonografia permitiu analisar a fundo distúrbios do sono, como ronco, insônia, apneia (breves e repetidas interrupções da respiração), terror noturno e sonambulismo. Antes essas questões eram tratadas por pneumologistas, psiquiatras, otorrinolaringologistas e neurologistas.
Agora, é preciso ter também uma especialização em medicina do sono, que trabalha todas essas áreas conjuntamente. “Mas já não estamos voltados apenas para doenças, focamos também na qualidade de vida das pessoas”, diz Marcelo Leão Andrade, pneumologista que fez parte da primeira turma de residentes na área aberta no Brasil pelo Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Com o avanço dos estudos científicos, vem se comprovando que, enquanto o corpo descansa, o cérebro trabalha em várias tarefas para garantir o equilíbrio físico e mental do corpo. Ele começa por eliminar as toxinas ligadas ao envelhecimento e à degeneração neurológica, além de consolidar memórias e liberar hormônios do crescimento e de reparação dos tecidos.
O sono também regula o metabolismo, a fome e o apetite, reduzindo a propensão à obesidade e suas consequências. Tem ainda um papel fundamental na modulação do sistema imunológico. “Dormir mal ou pouco eleva a produção dos hormônios do estresse, como o cortisol, causando uma queda na capacidade imunológica do corpo e facilitando o aparecimento de doenças autoimunes”, explica Andrade.
Perda irrecuperável
“O sono funciona exatamente como a nossa alimentação. Se você perdeu o almoço, pode até comer um pouco mais no jantar, mas aquele prejuízo metabólico não tem como ser totalmente recuperado”, compara o médico. Assim como o metabolismo e os hábitos de cada pessoa pedem certas quantidades de calorias e uns tendem a engordar, enquanto outros comem muito sem perder a silhueta, a medida do sono é individual. De qualquer forma, para cada faixa etária há períodos de sono recomendados (veja tabela “O sono certo”).
“Tal como a alimentação, o sono também deve ser mantido diariamente com qualidade e quantidade adequadas”, destaca Andrade. Não adianta querer estocá-lo ou compensá-lo no dia seguinte. As alterações que ocorreram no equilíbrio do organismo nas noites curtas da semana não serão revertidas com excesso de sono no fim de semana, por exemplo. Os desfechos de uma única noite maldormida são visíveis durante o dia: sonolência excessiva (faça o teste ao final da reportagem), impaciência, problemas de memória e concentração.
Quando a falta ou a má qualidade do sono se torna frequente, ocorrem alterações do humor mais profundas, como ansiedade, pânico, fobia e depressão. “Antes as pessoas conviviam com isso à base de muito pó de guaraná e café para se manter acordadas e produtivas durante o dia, mas hoje é possível atacar as origens do problema”, afirma Mariah Prata Taube, pneumologista especialista em doenças do sono.
A médica passou dois meses no laboratório do sono da Universidade Stanford (EUA), centro de referência mundial na área, ao lado de Christian Guilleminault, um dos precursores da medicina do sono e fundador desse centro nos anos 1970, com William Dement. Ela trouxe na bagagem a experiência com a polissonografia domiciliar, mais comum lá do que a feita em clínicas especializadas (no Brasil ocorre o contrário).
Embora o exame domiciliar custe menos da metade do realizado em clínicas (R$ 800 no Instituto do Sono de São Paulo, por exemplo), nossos convênios médicos cobrem apenas os feitos em clínicas. “O sistema domiciliar tem suas limitações, mas também tem uma grande vantagem: permite entrar no ambiente da pessoa e estudar como ela realmente costuma dormir”, aponta Mariah.
O exame é indolor e não invasivo. Utiliza sensores distribuídos pela superfície do corpo para medir temperatura corpórea, frequência cardíaca, movimento ocular, atividade dos músculos, fluxo e esforço respiratório, oxigenação do sangue, ronco, posição corpórea, além, claro, da atividade elétrica do cérebro, com o EEG.
O paciente chega ao consultório por volta das 21 horas, recebe a fiação e a equipe médica programa a aparelhagem para começar a funcionar no horário em que ele costuma dormir. Em alguns modelos de aparelho, o próprio paciente precisa ativá-lo. Na manhã seguinte, ele só precisa devolver o equipamento. Já nas clínicas especializadas, oferece-se um ambiente parecido a um hotel.
(Clique na imagem para ampliá-la)
Problema de todos nós
As doenças do sono afetam pessoas de qualquer idade, condição física e social. “Os pacientes típicos são os executivos entre 40 e 50 anos que se alimentam mal, roncam e têm prejuízo de rendimento no trabalho”, descreve Mariah. Entre as mulheres, o caso mais comum é o de quem entrou na menopausa, começou a roncar, fazer apneias e engordar.
“Com o estímulo dos computadores, smartphones e videogames, os adolescentes, que já têm a síndrome do atraso da fase do sono, vêm atrasando cada vez mais a produção da melatonina, indutor do sono, e não conseguem levantar para ir à escola no horário”, afirma Andrade. As pessoas buscam tratamento para o sono sobretudo por apresentar insônia, apneia, os prejuízos no rendimento escolar e laboral e ronco, fonte de constrangimentos e de divórcios.
“Não consigo tratar os pacientes do Sistema Único de Saúde, porque os remédios de doença do sono ainda não integram a lista-padrão do SUS”, diz Mariah. Ela os encaminha para centros de estudo e ambulatórios que pesquisam a área e “cruza os dedos” para que consigam vaga.
No caso de apneia, muitos pacientes têm processado suas prefeituras para obter o aparelho usado no tratamento, a máscara CPAP (Continuous Positive Airway Pressure), que pode custar R$ 3 mil. A causa é justa: a apneia do sono grave aumenta os riscos de acidentes cardiovasculares e de derrames, além de elevar em quase cinco vezes a probabilidade de desenvolver câncer em relação às pessoas que não têm esse problema.
A terapia cognitivo comportamental também é eficaz contra as doenças do sono. Nessa área, as causas são também consequências: o que causa a falta ou a piora do descanso também piora com a falta ou a má qualidade do descanso. O objetivo é inverter o sentido, transformando o ciclo vicioso em virtuoso. “Dormir bem é viver bem, e viver bem também melhora o sono”, sintetiza Andrade.
—–
Não durma no ponto
A prática de contar carneirinhos já caiu por terra. Foi comprovadamente pouco eficaz, revelam pesquisas da Universidade de Oxford. Mas outras técnicas podem ajudar você a criar um clima propício para dormir. Bons sonhos!
• Mantenha regularidade nos horários de dormir e acordar
• Evite estimulantes (como cafeína) pelo menos seis horas antes de ir para a cama
• Evite fazer exercícios físicos cerca de quatro horas antes de ir para a cama
• Evite refeições pesadas à noite
• Mantenha o quarto em temperatura agradável, sem ruídos e com a mínima iluminação possível
• Adote um ritual de relaxamento pelo menos uma hora antes de ir para a cama, evitando computadores e celulares
• Reserve a cama somente para dormir (e para a atividade sexual), de forma que o fato de deitar na cama seja um gatilho para o seu sono